FLÁVIO PEREIRA DA SILVA FILHO
O grande conflito e o verdadeiro vilão da história
Em lembrança ao atentado contra sua sede, ocorrido no dia 7 de janeiro do ano passado, o semanário francês Charlie Hebdo publicou nesta quarta-feira, 6 de janeiro, mais uma de suas polêmicas charges. A capa da edição especial estampa a figura de um deus ensanguentado, com uma metralhadora nas costas e o seguinte título: “Um ano depois, o assassino ainda está à solta”.
A publicação despertou críticas de alguns grupos religiosos ao redor do mundo. Um exemplo disso foi a resposta do Osservatore Romano, diário oficial do Vaticano, que considerou que “usar Deus para justificar o ódio é uma verdadeira blasfêmia”.
Não convém gastar tempo buscando responder aos ataques mordazes feitos pelo periódico francês à religião. Mas o fato me fez pensar na imagem distorcida que alguns têm de Deus, a ponto de retratá-lo como assassino.
No entanto, à luz da Bíblia temos a correta compreensão de quem é, de fato, o vilão da história. O verdadeiro assassino que está foragido, ou que continua à solta, é apresentado nas Escrituras como Lúcifer – nome de origem latina que significa “portador de luz”, mas que, na verdade, se tornou o príncipe das trevas. A Bíblia o descreve como “homicida desde o princípio” e como alguém que odeia a verdade (Jo 8:44).
A mudança de nome e de caráter do “filho do amanhecer”, ou “estrela da manhã”, para “adversário”, ou “acusador”, é um elemento-chave para entendermos como Lúcifer conseguiu inverter os valores, fazendo com que a culpa que deveria cair sobre ele mesmo fosse atribuída a Deus. Em primeiro lugar, é importante relevar que a descida de Lúcifer pelo caminho da escuridão não foi como o acionar de um interruptor que, quando tocado, transforma automaticamente tudo em trevas. Na verdade, o caminho dele foi uma jornada em que a luz desapareceu aos poucos. Esse caminho gradual e, ao mesmo tempo, inexplicável deu origem ao que a Bíblia chama de pecado, o que em linguagem simples é a “quebra da Lei de Deus” (IJo 3:4). Antes do pecado não existia a morte, sendo que “não matar” é um dos fundamentos da lei divina.
Apesar de não existir uma explicação para a origem do pecado, a revelação bíblica estabelece uma base segura para que, acima de qualquer perplexidade, se saiba que Deus não é o responsável pelo seu surgimento. Nesse sentido, em Ezequiel 28:12, o rei de Tiro, um monarca bem-sucedido em sabedoria e riqueza, é usado como um sinônimo perfeito para o entendimento parcial do fenômeno da queda de Lúcifer. A medida que o texto se desenvolve, dos versos 12 a 19, com a descrição da glória e posterior decadência do querubim cobridor, aquele que servia a Deus de maneira direta, junto ao Seu trono, vê-se que o ponto fundamental para a queda foi o orgulho. Como mostra a Bíblia de Estudo Andrews (p. 1.068), esta seção do livro de Ezequiel é organizada como em um espelho, pelo qual se pode ver a condição de Lúcifer antes e depois:
É exatamente no ponto central desse padrão simétrico (ou quiasma), em que um ser perfeito se entrega à corrupção (Ez 28:15,16), que se estabelece o começo do grande conflito entre Cristo e Satanás, que teve sua origem no Céu e foi transferido para a Terra (Is 14:12-14; Ez 28:12-18; Gn 3), alcançando o seu clímax no momento em que Cristo entra na história como homem (Gl 4:4), travando a batalha diretamente contra seu adversário (Ap 12:4-9). Tendo em vista o princípio unificador do grande conflito, conclui-se que essa guerra envolve todo o universo (1 Co 4:9; Hb 1:13,14) e que todas as criaturas inteligentes são, direta ou indiretamente, afetadas pelo confronto entre os dois poderes que polarizam o bem e o mal (Gn 6-8; 2 Pe 3:5-7).
Conforme argumenta Ranko Stefanovic no livro Revelation of Jesus Christ: commentary on the book of Revelation (p. 135 e 136), o Apocalipse apresenta a solução definitiva para a controvérsia, também em um padrão simétrico em que o ponto central (a subseção de Ap 11:19-13:18) é o mais importante:
No meio da principal subseção, que apresenta de maneira direta o grande conflito entre Cristo e Satanás, é fornecida a chave para a vitória: “o sangue do Cordeiro” (Ap 12:11). Aqui vemos não “um Deus foragido”, mas alguém que é julgado, condenado e morto mesmo sendo inocente. É exatamente aqui que “Deus prova o seu próprio amor para conosco pelo fato de ter Cristo morrido por nós, sendo nós ainda pecadores” (Rm 5:8). Aqui não vemos um “Deus assassino que ainda está à solta”, mas um Deus assassinado, que enfrentou a morte de cruz para salvar a humanidade.
FLÁVIO PEREIRA DA SILVA FILHO, mestre em Teologia Bíblica, é pastor e jornalista
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