Cristãos imperfeitos
Postado por: Da redação 3 de junho de 2015 em Artigos, Destaques, Logos 2 Comentários
O conceito bíblico de perfeição é diferente do que muita gente pensa
Todas as pessoas que procuram viver em santidade correm o risco de incorrer num erro conhecido como perfeccionismo. A ideia de que o verdadeiro cristão deve alcançar impecabilidade aqui na Terra tem causado diversos males em algumas denominações cristãs, e com os adventistas não tem sido diferente. A Palavra de Deus apresenta respostas para nossos maiores questionamentos, e entender o que ela tem a dizer sobre o assunto pode nos ajudar a evitar esse problema.
Embora o Antigo Testamento mencione algumas vezes a perfeição divina, o significado é diferente daquilo que a mente ocidental, grandemente influenciada pela filosofia grega, geralmente concebe. O Antigo Testamento se preocupa em retratar a perfeição divina em termos do relacionamento divinohumano e não em descrever a natureza perfeita de Deus como sendo um fim em si mesma.
O teólogo adventista Hans LaRondelle discorreu sobre isso no livro Perfection and Perfeccionism, lançado em meados da década de 1970. De lá para cá, ele descansou no Senhor, mas o problema persiste em alguns segmentos.
DUAS CATEGORIAS
Segundo estudiosos, pelo menos cinco vezes a palavra tamim (“perfeito”, “irrepreensível”) deve ser aplicada a Deus com o significado estrito de perfeição (Dt 32:4; 2Sm 22:31; Jó 37:16; Sl 18:30; 19:7). Porém, todas as vezes que isso ocorre o conceito de perfeição está inserido no contexto da aliança de Deus com seu povo.
O termo tamim nunca aparece como predicado de Yahweh no sentido de enfatizar a perfeição como um fim em si mesma. Ao contrário, o Antigo Testamento mostra a perfeição divina em termos de amor redentivo revelado nas obras salvíficas de Deus (Dt 32:4), na sua santa e justa lei (Sl 19:7), nos seus caminhos (2Sm 22:31; Sl 18:30), no seu conhecimento (Jó 37:16) e em toda a história da redenção do seu povo (Is 5:4).
Longe de ser um conceito abstrato, ou mero resultado de raciocínio lógico humano, e muito menos um ideal ético inatingível de virtudes morais, ela é revelada na realidade concreta da história de Israel. É perfeição divina em ação, caracterizada pela intenção de salvar o ser humano.
A graça divina oferecida a Israel por meio do concerto requeria do homem perfeita obediência a Deus. Entretanto, essa perfeita obediência moral deveria ser totalmente fundamentada no sentimento de gratidão motivado pela graça. Assim, perfeição é a resposta ao amor e à graça numa total e completa inclinação do coração e da vida à vontade de Deus.
Na religião israelita havia uma união indivisível entre a experiência religiosa, a adoração e o comportamento religioso. Isso é visto especialmente no livro dos Salmos, intimamente interligado com a adoração no santuário israelita. Após serem incorporados ao culto oficial israelita, os salmos foram aceitos como orações inspiradas e, portanto, modelo para os adoradores no serviço do templo.
O livro dos Salmos, assim como ocorre na literatura sapiencial, classifica os seres humanos em duas categorias: os justos (saddiqim) e os perversos (resaim). Os justos são aqueles que amam e temem a Yahweh, que fazem “o que é justo” para seus companheiros israelitas e vivem em obediência a toda a Torah (lei). Os perversos são aqueles que escolhem uma forma diferente de existência, em que falta o princípio do amor a Yahweh e sua Torah como a motivação para suas ações. A diferença entre as duas classes não é apenas de comportamento religioso, mas a conexão com o próprio Deus.
O justo (saddiq) não é meramente alguém perfeito ou virtuoso no sentido ético, mas aquele que, motivado pelo amor redentivo de Yahweh, tem confiança nele e lhe obedece, vivendo de acordo com os mandamentos éticos, sociais e cultuais do concerto. LaRondelle comenta: “O saddiq, em última instância, é determinado por seu relacionamento para com o cultos [relacionamento com Deus através da adoração], e não por sua moralidade, perfeição ética ou impecabilidade.”
Perfeição não é sinônimo de impecabilidade nem de vindicação do caráter de Deus, o que já foi feito por Cristo na cruz
O Salmo 19, por exemplo, intensifica a distinção levítica de pecados inconscientes e pecados cometidos por rebelião. Enquanto o pecado involuntário era perdoado pelo ritual expiatório do santuário, não havia expiação para o pecado da rebelião. Somente o segundo tipo de pecado era capaz de separar o pecador da relação de concerto com seu Deus.
Davi orou e clamou pelo perdão divino, capaz tanto de perdoar a culpa quanto de subjugar o poder do pecado. Para o salmista, o resultado desses dois feitos do perdão divino é a seguinte declaração de fé: “então serei irrepreensível [tamim]”. Perfeição no Salmo 19 não tem que ver com impecabilidade inerente à natureza, mas sim com uma atitude da graça divina.
O padrão a ser alcançado era fundamentado na motivação do amor. O indivíduo que pautava a vida por esse padrão era considerado saddiq, completamente “justo”, e tamim, “perfeito” ou “completo”. Quando o pecado o assaltava, ele se arrependia e seguia o ritual de expiação, experimentava a purificação e a recriação do seu coração. Então era considerado justo e perfeito. Assim, a ideia de perfeição não era orientada no sentido de uma norma ideal ou virtude elevada, mas no sentido do relacionamento cultual na esfera do concerto.
PERSONAGENS
O conceito de perfeição israelita pode ser constatado na realidade empírica da vida de grandes personagens da história bíblica. Noé é o primeiro homem que as Escrituras chamam de “perfeito”, atribuindo-lhe o derivativo tamim. Em Gênesis 6:9 encontramos a declaração: “Noé era um homem justo e íntegro entre seus contemporâneos; Noé andava com Deus.” Embora encontremos tal testemunho sobre Noé, em Gênesis 9:21-24 encontramos um episódio infeliz da vida do patriarca, em que é relatado um grave pecado moral.
A segunda declaração de perfeição da Bíblia aparece no relato sobre o patriarca Abraão. Na declaração divina da teofania de Gênesis 17:1, o próprio Deus, ao mesmo tempo, demanda e atesta a perfeição do patriarca. Essa perfeição não denota impecabilidade, mas uma sincera dedicação em seguir uma vida santificada na presença de Deus. Embora Abrão tenha sido um homem de reconhecidas qualidades morais, ele também cometeu sérias faltas (Gn 12:11-13; 20:11-13).
O terceiro exemplo bíblico de perfeição é o do patriarca Jó. O livro sobre a vida dele começa com uma impressionante declaração de perfeição sobre seu protagonista: “Havia um homem na terra de Uz, cujo nome era Jó; homem íntegro e reto, temente a Deus e que se desviava do mal” (Jó 1:1). Essa declaração quádrupla do caráter justo do patriarca inclui o radical hebraico tam, “perfeito”. Essa declaração inicial é reforçada pelo próprio Jó (6:29; 10:7; 12:4; 16:17; 23:11, 12; 29:12-17; 31:5, 6) e intensificada por outras três afirmações divinas (1:8, 2:3; 42:7, 8). Embora o testemunho bíblico a respeito dele o coloque na categoria de “perfeito”, sua condição moral estava longe de ser considerada como de impecabilidade (7:20, 21; 9:2, 15; 10:6; 14:16, 17).
Na teologia do Antigo Testamento, os “perfeitos” não são apenas distintos personagens bíblicos, como alguns patriarcas. O conceito de perfeição é ampliado a todo o Israel verdadeiro participante do concerto divino. Lemos: “bem-aventurados os irrepreensíveis” (Sl 119:1), “os que andam em integridade” (Pv 11:20)”, “os que andam retamente” (Sl 84:11). Em todos esses versos o verdadeiro israelita é designado com a palavra tamim.
PRESENTE DIVINO
Para entendermos o ensino de Cristo sobre a perfeição no Novo Testamento, é preciso analisar os dois lugares em que a palavra teleios aparece (Mt 5:48; 19:21), o equivalente do hebraico tamim. No contexto do sermão do monte, a declaração “Sede vós, pois, perfeitos, como perfeito é o vosso Pai que está nos Céus” é o sumário das antíteses que se encontram em Mateus 5:43-47. Ali há um contraste com a piedade legalística dos fariseus, que não entravam no reino de Deus e impediam outros de entrar. Isso já é uma indicação de que a declaração de Cristo não pode ser considerada um imperativo moral que reclame perfeição ética ou impecabilidade.
Os ensinamentos éticos do sermão do monte não foram endereçados aos gentios e muito menos aos fariseus cheios de justiça própria, mas aos filhos de Deus que oravam a seu Pai celestial (Mt 6:9; 7:7-11); aos que são chamados de “sal da Terra” e “luz do mundo”, cuja luz não deveria iluminar suas próprias boas obras, mas glorificar o “Pai que está no Céus” (Mt 5:13-16); aos que não se orgulham de sua justiça própria, mas têm “fome e sede de justiça” e “buscam em primeiro lugar o reino de Deus e a sua justiça” (Mt 5:6; 6:33).
O Salmo 37:11, texto de onde Jesus retirou sua declaração de Mateus 5:5, identifica “os mansos” ou “os justos” (saddiqim) como aqueles que “herdarão a Terra”. Essas duas classes e pessoas constituem o “homem íntegro” (tamim), ou “perfeito”, que tem a lei de Deus no coração (Sl 37:31). A expressão “limpos de coração” (Mt 5:8) também tem sua origem no livro de Salmos (24:4; 51:10). Assim como o acesso ao templo e o direito à participação do culto israelita eram restritos àqueles que se adequavam às condições da adoração e do comportamento israelita, as prescrições dadas por Cristo na “Torah do monte” são o código que restringe a entrada ao reino de Deus.
Em Lucas 6:36, paralelo a Mateus 5:48, o autor não usou teleios, mas oiktirmon, que significa “misericordioso”. Essa passagem concorda com a interpretação do imperativo de perfeição de Mateus como uma ativa e completa manifestação do amor perdoador a todas as pessoas, inclusive aos ingratos e injustos (Lc 6:35). A perfeição de Mateus 5:48 pode ser caracterizada dinamicamente como amor santo e misericordioso.
LaRondelle argumenta que a intenção de Mateus ao utilizar a palavra teleios foi demonstrar que o amor e a justiça não estão em contraste, mas são o cumprimento da Torah. Ele também declarou que o conceito dessa palavra não é orientado para a perfeição ética absoluta, mas para a consagração religiosa e cultual ao Deus universal de amor e graça.
Há uma riqueza no significado de teleios no evangelho de Mateus, o qual demonstra uma continuidade básica com o Antigo Testamento. Essa perfeição não pode ser alcançada por sentimentos, mas por um relacionamento perfeito com Cristo. Ela não é alcançada ao fim de um longo e difícil caminho de tentativas de imitação de Jesus, mas por meio da comunhão redentiva com ele enquanto o caminho está sendo trilhado. Para Mateus, a ética cristã de obediência é fundamentada no próprio Cristo.
Portanto, a perfeição bíblica não é sinônimo de impecabilidade nem de vindicação do caráter de Deus, o que já foi feito por Cristo na cruz. Ela não é revelada em termos de virtude moral elevada ou padrão ético inatingível. Trata-se de um presente divino disponibilizado à pessoa que mantém relacionamento com seu doador, podendo ser alcançada aqui e agora.
O maior erro do perfeccionismo não está na sua tentativa desesperada de alcançar perfeição moral, mas em colocar o foco de seus esforços no ser humano, e não em Deus, a fonte primária de perfeição. O problema não é buscar a santidade; é não entender que ela é expressa ao se viver o amor de Deus. [Imagens: Fotolia] PATRICK SIQUEIRA é capelão do Colégio Adventista de Vila Yara, em Osasco (SP)
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