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quinta-feira, 9 de outubro de 2014

Eu era feliz e não sabia!

Eu era feliz e não sabia!



Por Hermes C. Fernandes

“Eu era feliz e não sabia!” Li esta frase, se não me engano, pichada no muro de uma estação de trem durante o governo José Sarney. Quem a escreveu não pretendia homenagear Ataulfo Alves, o brilhante compositor que a escreveu na linha final da canção "Meus tempos de criança", em que celebra as memórias de sua infância. Em vez disso, seu propósito era expressar a saudade que sentia do período da Ditadura Militar. O fato é que o primeiro governo civil que tivemos depois de vinte anos de ditadura foi uma lástima. A inflação explodiu. O desemprego e a violência urbana, idem.

Quem nunca se viu tomado por um sentimento de nostalgia que atire a primeira pedra. Ah, meu tempo de criança... A gente tem por hábito achar que o passado foi muito melhor do que o presente. Todavia, a recomendação das Escrituras vai da direção oposta:

“Nunca digas: Por que foram os dias passados melhores do que estes? Porque não provém da sabedoria esta pergunta. Eclesiastes 7:10

Cada etapa de nossa peregrinação existencial serve a um propósito maior. Se há, de fato, um tempo áureo, este se encontra no futuro, não no passado. Por isso, somos convocados a cultivar a flor da esperança e não da nostalgia.

O salmo 137 expressa eloquentemente este sentimento:

“Junto aos rios da Babilônia, ali nos assentamos e choramos, quando nos lembramos de Sião. Sobre os salgueiros que há no meio dela, penduramos as nossas harpas. Pois lá aqueles que nos levaram cativos nos pediam uma canção; e os que nos destruíram, que os alegrássemos, dizendo: Cantai-nos uma das canções de Sião. Como cantaremos a canção do Senhor em terra estranha?” Salmos 137:1-4

O que se poderia esperar de alguém naquelas condições? Como esperar ouvir canções de quem fora tirado à força de sua terra e levado cativo para uma terra estranha? Para os judeus havia chegado a hora de pendurar suas harpas. Não fazia o menor sentido celebrar durante um tempo de cativeiro. Para eles, a felicidade habitava em algum lugar do passado. Eles adorariam se as profecias de que passariam apenas alguns dias na Babilônia fossem verdadeiras. Mas em vez disso, Jeremias os importunava dizendo que sua estada ali abrangeria várias gerações.

Mas o que seriam 70 anos de cativeiro na Babilônia para quem já havia amargado mais de 400 anos de escravidão no Egito? Antes cativo por duas gerações do que escravo por dez.

A verdade é que as pessoas nunca estão satisfeitas com o presente e em vez de se projetarem para o futuro, preferem murmurar e cogitar o quão felizes já foram um dia.  Se rebobinassem a fita um pouco mais, veriam que antes de chegarem a Sião, amargaram 40 anos de peregrinação no deserto, e antes disso, 400 anos de serviços forçados no Egito.

A felicidade não está em algum lugar do passado, mas em algum lugar do porvir. E quanto mais retrocedermos ao passado, mais distantes estaremos dela. A ordem é avançar (Fp.3:13). Se não for possível agora, é melhor marcar passo por alguns instantes do que andar para trás. Afinal de contas, Deus não tem prazer nos que retrocedem (Hb. 10:38).

Não importa em que etapa estivermos, sempre haverá quem reclame e expresse saudade do passado. Durante sua marcha pelo deserto, o povo hebreu sentiu falta das cebolas do Egito, esquecendo-se de quão dura havia sido sua estada naquela nação (Nm.11:5). Eles chegam a dizer que tudo o que recebiam no Egito vinha-lhes de graça. E as chibatadas? E ver os filhos trabalhando sem qualquer perspectiva, não conta?

A verdade é que insistimos em nutrir uma visão romântica do passado. O tempo dos nossos avós é que era bom. Havia mais cavalheirismo, dirão as mulheres. E quanto a ser tratada como objeto pelo marido, não conta? Não faz tanto tempo assim que as mulheres nem sequer podiam votar. E se o marido a matasse alegando ser para lavar a sua honra, nenhum juiz o condenaria.

Quantas vezes tenho ouvido meus filhos dizerem que prefeririam ser jovens nos anos 70 ou 80. Posso até concordar que a música era bem melhor do que as que ouço hoje nas rádios. Mas, sinceramente, não trocaria este tempo por nenhum outro da história. Quem tem a minha idade sabe o que é viver na expectativa de que a qualquer momento poderá estourar uma guerra nuclear que dizimará a população mundial. Conhece também a fúria de uma inflação galopante. O mesmo pacote de biscoito que se comprava por um preço pela manhã no supermercado, custaria mais caro depois do meio-dia. Somente os ricos tinham telefone em casa, carro, geladeira e TV colorida. Não tenho saudade disso.
Saímos do Egito da Ditadura Militar, atravessamos o deserto dos primeiros governos civis depois de duas décadas, e agora aspiramos pela terra prometida de uma nação mais justa, menos corrupta, mais solidária, menos preconceituosa. Cada governo deu sua contribuição neste processo, e algumas vezes, também contribuiu para o retrocesso. Porém, devemos lealdado ao futuro e não a uma ideologia, partido ou candidatura em particular.

A jornada no deserto deveria ter durado quarenta dias. Mas por causa da saudade do Egito, durou quarenta anos. Foi mais fácil tirá-los do Egito do que tirar o Egito deles.

Que Deus nos livre e guarde de uma nova ditadura, seja de esquerda ou de direita, militar ou civil.  Enfrentemos o que tivermos que enfrentar, mas não retrocedamos. Se não houver motivos para celebrar, penduremos nossas harpas, adiemos nossa esperança por mais um prazo, mas não nos entreguemos ao desespero, nem retornemos ao Egito.

O exílio na Babilônia equivalia à estadia num hotel cinco estrelas em comparação ao tempo de escravidão egípcia.

Pelo menos, o que nos pedem na Babilônia é que cantemos as canções de Sião. O que nos pediam no Egito era que construíssemos seus palácios ao poder de chibatadas.

Os filhos de Israel chegaram ao Egito como convidados especiais de Faraó, devido ao seu parentesco com José, então governador do país. Na medida em que foram se multiplicando, tornaram-se alvo de preocupação. Um novo Faraó se levantou e, por não ter conhecido a José, não teve qualquer consideração pelos hebreus. Para evitar um levante, tornou-os escravos. Já na Babilônia, os judeus chegaram como exilados. Não eram forçados a nada. Só não podiam voltar à sua terra. Alguns foram levados ao palácio do rei e tratados como príncipes, dentre eles, Daniel.  Pelo menos, havia perspectiva de ascensão.

No Egito, eles trabalharam na construção de palácios para os egípcios. Na Babilônia, tinham a oportunidade de construírem suas próprias casas, plantarem seus jardins, casarem seus filhos, etc. (Jer. 29:4-7).

Quanto maiores os direitos e privilégios, maiores também as responsabilidades.

Enquanto estavam no Egito, foram poupados das pragas enviadas por Deus. Somente os egípcios eram atingidos (Êx.10:21-23). Mas na Babilônia, foram instruídos pelo profeta Jeremias a trabalharem pela prosperidade da cidade, pois se ela prosperasse, eles igualmente prosperariam. Trata-se, portanto, de um paradigma diferente do egípcio. Na condição de escravos, Deus os protegia das pragas. Mas na condição de cativos, tudo o que ocorresse à cidade, igualmente os acometeria.

Creio que vivemos neste paradigma nos dias atuais. Deus não nos tem colocado numa redoma. Como disse o escritor de Eclesiastes, “tudo sucede igualmente a todos: o mesmo sucede ao justo e ao ímpio, ao bom e ao mau(Ecl.9:2). Não é em vão que Pedro se dirige à igreja como aquela que habita na Babilônia (1 Pe.5:13). A ordem, portanto, é que nos insiramos em seu contexto social, cultural, político e econômico, buscando fazer a diferença em vez de ficar nos lamentando de saudade de Sião.

E não adianta recorrermos ao Egito em busca de ajuda contra a Babilônia (Is.30:1-3). Deixemos o Egito onde ele deve ficar, nas páginas do livro de história (Êx.14:13). O que nos espera à frente é uma terra que mana leite e mel. Enquanto atravessamos o deserto, aproveitemos o maná que cai do céu, sem nos esquecer de que, tão logo atravessemos o Jordão, o maná cessará, pois viveremos daquilo que cultivarmos na terra da promessa.

Cada nova etapa tem suas próprias demandas. Não se pode viver em Canaã como se perambulasse ainda pelo deserto. Como não se pode viver em Babilônia como se vivesse na escravidão do Egito. No dizer de Paulo, "quando eu era menino, falava como menino, pensava como menino; desde que me tornei homem, deixei as coisas de menino" (1 Co. 13:11), 

Aproveitando a proximidade do dia das crianças, quero dizer que até tenho saudade da minha infância, mas não do meu tempo de criança. Acho que preferiria ser menino hoje...rs

Fonte - http://www.hermesfernandes.com/2014

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