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terça-feira, 30 de setembro de 2014

O liberalismo teológico morreu?


O liberalismo teológico morreu?

De vez em quando leio em algum lugar gente reclamando que eu fico ressuscitando defunto ao criticar os liberais. “O liberalismo teológico já morreu,” dizem eles, “não há mais liberais hoje”. A acusação implícita é que eu teimo em manter viva a polêmica entre o fundamentalismo e o liberalismo teológico do início do séc. XX nos Estados Unidos que já faz parte de uma história vencida e passada.
Bom, para mim o liberalismo teológico está bem vivo, sim, em nossos dias e no Brasil. Deixe-me explicar.
1. Como movimento acadêmico, teológico e filosófico, o liberalismo de fato já terminou historicamente – fato este nunca desconhecido e muito menos negado por mim. Já em 2007 eu escrevi um post, “O Retorno de Pé na Cova,” comentando o renascimento do velho liberalismo nas academias teológicas brasileiras.
Vejam o que escrevi em outro post, desta feita sobre o barthianismo:
“Após a Reforma, durante os séculos dezessete e dezoito, a Igreja protestante foi largamente influenciada por idéias originadas do Iluminismo. O racionalismo desejava submeter todas as coisas ao crivo da análise racional. Lentamente a razão humana começou a triunfar sobre a fé. O filósofo L. Feuerbach tentou transformar a teologia em antropologia, dizendo que tudo que se diz sobre Deus, na verdade, é dito sobre o homem. Ele influenciou grandemente K. Marx, S. Freud, R. Bultmann e F. Schleiermacher. Esse último desvinculou a fé cristã da história e da teologia, reduzindo a experiência religiosa ao sentimento de dependência de Deus. Somente depois ficaria evidente que era impossível construir uma teologia em cima de um terreno tão subjetivo, mas na época, e por mais de um século, Schleiermacher foi seguido por muitos e sua influência continua até hoje.
Na mesma época, surgiu o método histórico-crítico de interpretação da Bíblia, que negava a inspiração divina de seus livros e tratava-a como meros registros humanos falíveis e contraditórios da fé de Israel e dos primeiros cristãos. A confiança na Bíblia foi tremendamente abalada.
Esses desenvolvimentos dentro da Igreja e o movimento que surgiu associado a eles foi chamado de liberalismo. O liberalismo tinha uma perspectiva elevada do homem e acalentava a esperança de que o Reino de Deus poderia ser implantado nesse mundo mediante os novos conhecimentos científicos e tecnológicos trazidos pelo Iluminismo. Com isso, o Evangelho perdeu a sua exclusividade e força. A Igreja começou a secularizar-se, particularmente na Europa.
Então veio a I Guerra Mundial. As esperanças do liberalismo teológico e do humanismo em geral foram esmagadas. Perplexidade e confusão dominaram os cristãos da Europa. Surge a teologia da crise”.
Portanto, fica claro que faço a distinção entre o liberalismo teológico como movimento histórico – este, sim, já acabado – e o liberalismo teológico como conjunto de idéias, pressupostos e convicções sobre a Bíblia e a teologia. Este último está vivinho, sim...
2. Essas idéias do liberalismo teológico continuam presentes e sendo defendidas em sala de aula por pastores, professores e teólogos. Se não vejamos. Segue abaixo uma relação de algumas destas idéias:
  • O sobrenatural não invade a história. Milagres não acontecem como fatos no tempo e no espaço, mas são explicações ou projeções das pessoas na tentativa de descrever suas experiências ou entender Deus.
  •  A história se desenrola numa relação natural de causas e efeitos.
  • Milagres como o nascimento virginal de Cristo, os milagres que o próprio Cristo realizou, sua ressurreição física dentre os mortos, os milagres do Antigo e Novo Testamentos nunca aconteceram na história. No máximo, na heilsgeschichte (história santa, ou história salvífica), diferente do mundo da história bruta, real, factível.
  • Temas como criação, Adão, queda, milagres, ressurreição, entre outros, pertencem à história salvífica e não à história real e bruta. Adão e Eva não foram pessoas reais.
  •  Não interessa o que realmente aconteceu no túmulo de Jesus no primeiro dia da semana, mas, sim, a declaração dos discípulos de Jesus que diz que Jesus ressuscitou.
  • Os relatos bíblicos dos milagres são invenções piedosas do povo judeu e dos primeiros cristãos, mitos e lendas oriundos de uma época pré-científica, quando ainda não havia explicação racional e lógica para o sobrenatural.
  • A Escritura contém erros e contradições, lado a lado com aquelas palavras que provêm de Deus. Nossa tarefa é tentar separar as duas coisas.
  • Interpretar a Bíblia historicamente significa reconhecer que ela contém contradições. Qualquer abordagem hermenêutica deixa de ser histórica se não aceitar essas contradições.
  • A Igreja Cristã se perdeu na interpretação da Bíblia através dos séculos e somente com o advento do Iluminismo, do racionalismo e das filosofias resultantes é que se começou a analisar criticamente a Bíblia e a teologia cristã, expurgando-as dos alegados mitos, fábulas, lendas, acréscimos, como, por exemplo, os mitos da criação e do dilúvio e de personagens inventados como Adão e Moisés, etc.
  • O sentimento religioso é algo universal, isto é, cada ser humano é capaz de experimentá-lo. É esse sentimento que dá validade às experiências religiosas e que torna o ecumenismo possível. 
Agora, eu gostaria de saber se os que dizem que o liberalismo teológico já morreu serão honestos o suficiente para responder a esta indagação, a saber, se estas idéias estão totalmente ausentes nos cursos de teologia em nosso país e se não existe nenhum professor de teologia ou de Bíblia ensinando estas coisas hoje nos seminários, institutos bíblicos, escolas de teologia ou universidades teológicas.
3. Eles dizem que o liberalismo foi suplantado pela neo-ortodoxia, movimento que veio em seguida. Todavia, estou convencido de que a neo-ortodoxia, preservou, perpetuou e continuou algumas das principais ênfases do liberalismo teológico, especialmente o entendimento liberal quanto às Escrituras. Tratei deste assunto neste post: “A Voz é de Jacómas as Mãos são de Esaú”.
Num outro post, intitulado “Carta a Bultman,”eu escrevi o seguinte, dirigindo-me numa carta hipotética ao falecido liberal:
Eu gostaria de poder lhe dizer que suas idéias morreram e que hoje praticamente não tem mais ninguém que seriamente as defenda. Mas, não, não posso dizer isto. Lembra do Karl Barth, que viveu na sua época, e com quem você trocou correspondências por mais de 30 anos? Vocês dois tinham muita coisa em comum, embora também diferenças. Pois é, acho que ele acabou levando a melhor, pois muitos de teus discípulos acabaram virando bartianos ou neo-ortodoxos – é assim que os chamamos – e embora falem a língua dos ortodoxos (daí o nome neo-ortodoxia) ainda conservam em grande parte aquele seu ceticismo radical para com a veracidade e historicidade do Novo Testamento. Estes neo-ortodoxos detestam ser identificados como liberais, mas ao final, não sendo realmente uma nova ortodoxia, o melhor nome para eles deveria ser neo-liberais mesmo.”
Portanto, não acho que estou ressuscitando defunto quando critico os liberais. Se liberal é quem defende aqueles pontos acima e fundamentalista é quem os contesta, então, a polêmica continua, sim. Não creio que o cerne da controvérsia entre fundamentalistas e liberais já tenha se encerrado historicamente, como querem alguns.
O curioso, entretanto, é que eles se esquecem deste argumento quanto me chamam de fundamentalista... a rigor, também não deveriam mais existir fundamentalistas hoje... 
 Em Ó Tempora ó Mores - divulgação Genizah

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