Breve histórico do movimento pentecostal no mundo e no Brasil
Fonte - Genizah
O DESAFIO DO NEOPENTECOSTALISMO E AS IGREJAS REFORMADAS
1. Aspectos históricos
São mencionados
a seguir alguns poucos exemplos ilustrativos de movimentos e fenômenos
carismáticos extraídos da história da igreja.
1.1 A igreja primitiva
1.1.1 Corinto
Já nos dias da
igreja primitiva houve a ocorrência de manifestações que hoje chamamos
de carismáticas. O exemplo clássico é o da comunidade cristã de Corinto.
Como todos sabem, naquela igreja apostólica houve manifestações
extraordinárias de línguas, profecias e outros fenômenos. Todavia, tais
manifestações estavam diretamente associadas com muitos dos problemas e
conflitos vividos por aquela comunidade. Era como se os dons do
Espírito, ao invés de serem um fator de união, estivessem sendo um fator
de divisão no corpo de Cristo. Portanto, desde o início os fenômenos
carismáticos foram um elemento tanto de vitalidade quanto de
controvérsia no seio da cristandade. Curiosamente, tais fenômenos
espetaculares parecem ter estado especialmente ligados à igreja de
Corinto. Pouco se diz a respeito dos mesmos nos outros documentos do
Novo Testamento (por exemplo, as línguas são mencionadas apenas em Mc
16.17; At 2.3-11; 10.46; 19.6; e 1 Co 12-14). Parece que nas outras
igrejas apostólicas, essas manifestações eram inexistentes, moderadas ou
exercidas de modo mais equilibrado e menos egocêntrico do que em
Corinto.
1.1.2 Montanismo
Com o passar do
tempo, o exercício dos ministérios e dons carismáticos entrou em
declínio na vida da igreja. Uma das razões principais foi a luta contra
as heresias que caracterizou os primeiros séculos do cristianismo. Houve
casos em que as manifestações carismáticas estavam associadas com
ensinos e práticas que a igreja antiga considerou divergentes da fé
bíblica e apostólica. Um bom exemplo disso foi o movimento conhecido
como montanismo ou “nova profecia”, que surgiu por volta do ano 157 na
Frígia, uma província da Ásia Menor. Dizendo-se inspirado pelo Espírito
Santo, um cristão chamado Montano começou a profetizar extaticamente,
sendo seguido por duas profetizas, Priscila e Maximila. Eles afirmavam
serem os últimos de uma linhagem de profetas e convocaram os crentes a
se prepararem para a descida da Jerusalém Celestial. O montanismo teve
algumas ênfases positivas (o Espírito Santo, a santidade da igreja) e
chegou a atrair um grande teólogo, Tertuliano, que abraçou o movimento.
Ao fim, todavia, a “nova profecia” foi rejeitada pela igreja,
principalmente por seu emocionalismo, desobediência às autoridades da
igreja e revelações extrabíblicas. Os profetas montanistas afirmavam
receber comunicações diretas de Deus, e as suas profecias ou oráculos
eram considerados como normativos pelos seguidores, praticamente no
mesmo nível das Escrituras. Além disso, foram acusados de falsas
profecias, pois suas previsões acerca do iminente final dos tempos não
se cumpriram. Mesmo assim, o montanismo subsistiu por vários séculos.
Durante a Idade
Média, continuaram a surgir movimentos esporádicos que tinham as mesmas
características básicas do montanismo. Mais tarde, com a Reforma do
século 16, também houve ocorrências similares entre grupos protestantes,
como foi o caso de alguns anabatistas e dos quakers. Os quakers
surgiram na Inglaterra, no século 17, sob a liderança de George Fox
(1624-1691), que pregou a mensagem da “nova era do Espírito.” O
movimento enfatizava a “luz interior,” ou comunicações diretas do
Espírito, que eram tão importantes quanto as Escrituras. Nas suas
reuniões, os quakers aguardavam que o Espírito Santo falasse a eles e
através deles.
1.2 O século 19
1.2.1 Edward Irving
Um interessante
exemplo do início do século 19 é o de Edward Irving (1792-1834),
considerado um dos precursores do moderno movimento carismático.[2]
Irving era um pastor da Igreja Presbiteriana da Escócia que se
transferiu para Londres após um ministério inicial em Glasgow. Logo,
seus dotes de oratória, seu carisma pessoal e suas mensagens ungidas
começaram a atrair grandes multidões à igreja que pastoreava. Ele passou
a fazer parte de um grupo que se reunia para estudar escatologia.
Convicto da iminente volta de Cristo, o grupo passou a orar por um
derramamento do Espírito. No início da década de 1830, após surgirem
algumas manifestações carismáticas na Escócia, houve a ocorrência de
línguas e profecias na igreja de Irving, que as considerou uma obra do
Espírito Santo. Em 1832, Irving foi afastado do pastorado da igreja,
sendo acompanhado por cerca de 600 seguidores, que criaram uma nova
denominação, a Igreja Católica Apostólica, caracterizada por uma
eclesiologia complexa e uma liturgia altamente elaborada, além da sua
ênfase carismática. No ano seguinte, Irving foi deposto do ministério
sob acusação de heresia. Ele afirmava que Cristo havia nascido com uma
natureza humana pecaminosa, que foi, todavia, preservada sem pecado e
incorruptível graças à atuação do Espírito Santo. No final de 1834,
Irving veio a falecer com apenas 42 anos, vitimado pela tuberculose. Nos
seus últimos meses de vida, ele estava convicto de que seria curado da
sua enfermidade; porém, a cura não veio e ele deixou de tomar precauções
que talvez pudessem ter evitado sua morte prematura.
1.2.2 Miguel Vieira Ferreira
Um exemplo mais
próximo de um movimento com características carismáticas é aquele
ligado ao Dr. Miguel Vieira Ferreira (1837-1885), um antigo membro da
Igreja Presbiteriana do Rio Janeiro. Dr. Miguel era membro de uma
família aristocrática do Maranhão e formou-se em engenharia na então
capital do império. Antes de ingressar na Igreja Presbiteriana, havia
tido contatos com o espiritismo. Foi recebido como membro da Igreja do
Rio de Janeiro em 1874, durante o pastorado do Rev. Alexander L.
Blackford. No início, teve um comportamento incomum. Certa vez,
terminado o culto, permaneceu cerca de meia hora totalmente imóvel, sem
poder mover as mãos ou os pés e abrir os olhos. Mais tarde, foi eleito
presbítero e acompanhou o Rev. Blackford em viagens evangelísticas. O
pastor-auxiliar da Igreja do Rio, Rev. Dilwin M. Hazlett, ocupado que
estava com uma tipografia de sua propriedade, deixou o Dr. Miguel ocupar
o púlpito da igreja. Este começou a fundamentar o seu ensino em sonhos e
visões, pretendendo ter revelações diretas do céu (“Deus fala e quer
falar de viva voz aos homens”). Em 1879, foi suspenso do presbiterato e
da comunhão. Ele deixou a igreja presbiteriana com outros 27 membros e
fundou a Igreja Evangélica Brasileira, que perdura até os dias
atuais.[3]
1.3 O século 20
1.3.1 O pentecostalismo
O início do
século 20 testemunhou um dos eventos mais marcantes da história do
cristianismo. Fenômenos que até então haviam ocorrido um tanto
esporadicamente, entre grupos minoritários, passaram a ser parte de um
influente e vasto movimento composto de milhões de adeptos. Em muitos
países, os pentecostais passaram a constituir a grande maioria dos
evangélicos.
O
pentecostalismo resultou de uma somatória de influências: o movimento
pietista do século 18, os grandes despertamentos nos Estados Unidos, o
metodismo de João Wesley e, mais especificamente, o chamado movimento de
“santidade” (holiness) do final do século 19. A busca de avivamento e
de santificação, ao lado de uma forte expectativa do final dos tempos,
levou muitos cristãos à convicção de que haveria um derramamento
especial do Espírito Santo, evidenciado pela ocorrência de manifestações
sobrenaturais semelhantes àquelas mencionadas no Novo Testamento.[4]
Um importante
pioneiro foi Charles Fox Parham (1873-1929), que fora criado em igrejas
metodistas e “holiness,” e passou a ensinar aos seus alunos no Kansas e
no Texas que os crentes deviam esperar um batismo “com o Espírito Santo e
com fogo”. O evangelista R. A. Torrey (1856-1928), outrora companheiro
de Dwight L. Moody, fez uma turnê mundial de reavivamento que teve o
efeito de aproximar muitas pessoas que mais tarde iriam participar do
movimento pentecostal. Finalmente, o evento decisivo ocorreu em um
reavivamento iniciado em 1906 na Missão Fé Apostólica, na Rua Azusa, em
Los Angeles, onde um ex-aluno de Parham, o pregador negro William J.
Seymour (1870-1922) iniciou uma longa série de reuniões que enfatizavam o
falar em línguas como evidência do batismo com o Espírito Santo, a
marca registrada do pentecostalismo. Logo, o movimento difundiu-se para
outras cidades norte-americanas (especialmente Chicago) e para outros
países.
1.3.2 O pentecostalismo no Brasil
Pouco tempo
depois do seu surgimento nos Estados Unidos o movimento pentecostal
chegou ao Brasil. Quase que simultaneamente, duas igrejas pentecostais
iniciaram suas atividades em solo brasileiro, uma no sul e a outra no
norte do país. Em poucas décadas, esse movimento haveria de transformar
de modo permanente e profundo a face do protestantismo nacional.
Em um conhecido
ensaio sobre o pentecostalismo brasileiro, Paul Freston observa que a
história desse movimento pode ser dividida em três “ondas” de
implantação de igrejas.[5] A primeira onda iniciou-se na década de 1910,
com a chegada da Congregação Cristã no Brasil (1910) e da Assembléia de
Deus (1911). A Congregação Cristã foi fundada pelo italiano Luigi
Francescon (1866-1964), que emigrou para os Estados Unidos, converteu-se
ao evangelho, tornou-se um dos fundadores da Igreja Presbiteriana
Italiana, em Chicago, e eventualmente foi alcançado pelo nascente
movimento pentecostal. Chegou ao Brasil em 1910, em resposta a uma
profecia para que levasse a obra pentecostal aos seus patrícios. Iniciou
as suas atividades entre imigrantes italianos residentes em São Paulo e
Santo Antonio da Platina, no Paraná. Já a Assembléia de Deus brasileira
resultou dos esforços de dois suecos de origem batista, Gunnar Vingren
(1879-1933) e Daniel Berg (1885-1963), que igualmente emigraram para os
Estados Unidos e foram alcançados pelo movimento pentecostal na cidade
de Chicago. Os dois obreiros fixaram-se em Belém do Pará, onde passaram a
freqüentar a igreja batista, cujo pastor também era de nacionalidade
sueca. Alguns meses mais tarde, a mensagem pentecostal de Vingren e Berg
produziu um cisma na igreja, surgindo assim o primeiro grupo da nova
denominação.
Essas igrejas
virtualmente dominaram o campo pentecostal durante 40 anos, pois as suas
rivais eram poucas e inexpressivas.[6] Das duas pioneiras, a Assembléia
de Deus foi a que mais se expandiu numérica e geograficamente, a ponto
de ser praticamente a única expressão do protestantismo em alguns
estados do norte.[7] A Congregação Cristã no Brasil, após um período em
que ficou mais limitada à comunidade italiana, sentiu a necessidade de
assegurar a sua sobrevivência por meio do trabalho entre os
brasileiros.[8] Após um rápido crescimento inicial, foi ultrapassada
pela Assembléia de Deus no final dos anos 40.
A segunda onda
pentecostal ocorreu na década de 50 e início dos anos 60, quando o campo
pentecostal se fragmentou e surgiram, entre muitos outros, três grandes
grupos ainda ligados ao pentecostalismo clássico: a Igreja do Evangelho
Quadrangular (1951), a Igreja Evangélica Pentecostal O Brasil para
Cristo (1955) e a Igreja Pentecostal Deus é Amor (1962), todas elas
acentuando de maneira especial a cura divina. Essa segunda onda começou
quando a urbanização e o surgimento de uma sociedade de massas
possibilitam um crescimento pentecostal que rompeu com as limitações dos
modelos existentes, especialmente em São Paulo. Freston argumenta que o
estopim foi a chegada da Igreja Quadrangular, com seus métodos
arrojados, forjados precisamente no berço dos modernos meios de
comunicação de massa, a Califórnia do período entre as duas guerras
mundiais.[9] Todavia, quem lucrou com o novo modelo, no primeiro
momento, não foi a Igreja Quadrangular, excessivamente estrangeira, e
sim a sua criativa dissidência nacionalista, a Igreja O Brasil para
Cristo.
A Igreja do
Evangelho Quadrangular foi fundada nos Estados Unidos pela controvertida
evangelista Aimee Semple McPherson (1890-1944) e chegou ao Brasil
através do missionário Harold Williams, um ex-ator de filmes de
faroeste, que fundou a primeira igreja em novembro de 1951 em São João
da Boa Vista, São Paulo. Em 1953 teve início a Cruzada Nacional de
Evangelização, sendo Raymond Boatright o principal evangelista. Desde
então a Igreja Quadrangular tem crescido constantemente, sendo uma de
suas peculiaridades a forte ênfase dada ao ministério feminino.[10]
Um dos
primeiros pastores da Igreja Quadrangular brasileira foi um
ex-evangelista da Assembléia de Deus chamado Manoel de Mello. Em 1956,
ele separou-se da Cruzada Nacional de Evangelização, organizando a
campanha “O Brasil Para Cristo”, da qual eventualmente surgiu a igreja
de mesmo nome. Manoel de Mello surpreendeu o mundo evangélico em 1969,
quando filiou a sua igreja ao Conselho Mundial de Igrejas, filiação essa
que perdurou até 1986.[11] Em 1979, a Igreja Evangélica Pentecostal O
Brasil Para Cristo inaugurou o seu gigantesco templo em São Paulo, sendo
orador oficial Philip Potter, secretário-geral do CMI, e estando entre
os presentes o cardeal arcebispo de São Paulo, D. Paulo Evaristo
Arns.[12]
Outra
importante denominação da segunda onda pentecostal, a Igreja Deus é
Amor, foi fundada por David Miranda (nascido em 1936), filho de um
agricultor do Paraná. Vindo para São Paulo, converteu-se numa pequena
igreja pentecostal e em 1962 iniciou a sua igreja em Vila Maria. Pouco
depois, a igreja transferiu-se para o centro da cidade e em 1979 foi
adquirida a “sede mundial” da Baixada do Glicério, um dos maiores
templos evangélicos do Brasil, com capacidade para dez mil pessoas.[13]
A terceira onda
histórica do pentecostalismo brasileiro começou no final dos anos 70 e
ganhou força na década de 80. Sua representante máxima é a Igreja
Universal do Reino de Deus (1977), mas existem outros grupos expressivos
como a Igreja Internacional da Graça de Deus (1980), as Comunidades
Evangélicas, Igreja Renascer em Cristo, Comunidade Sara Nossa Terra,
etc. Segundo Paul Freston, essas igrejas representam “uma atualização
inovadora da inserção social e do leque de possibilidades teológicas,
litúrgicas, éticas e estéticas do pentecostalismo”.[14] A terceira onda
começou após a modernização autoritária do país, principalmente na área
das comunicações, quando a urbanização já atingia dois terços da
população, o milagre econômico estava exaurido e iniciava-se a “década
perdida” dos anos 80. A onda começou e se firmou no Rio de Janeiro
economicamente decadente, com sua violência, máfias de jogo e política
populista. O novo pentecostalismo, também denominado “pentecostalismo
autônomo”[15] por alguns estudiosos, adaptou-se facilmente à cultura
urbana influenciada pela televisão e pela ética da nova geração. Uma das
características do movimento é o uso inteligente dos meios de
comunicação de massa, nacionalizando um pentecostalismo bem-sucedido nos
Estados Unidos.[16]
Uma importante
precursora dos grupos neopentecostais foi a Igreja de Nova Vida, fundada
pelo canadense Robert McAlister, que rompeu com a Assembléia de Deus em
1960. A Nova Vida foi pioneira de um pentecostalismo de classe média,
menos legalista, e investiu fortemente na mídia. Foi também a primeira
igreja pentecostal a adotar o episcopado no Brasil. Sua maior
contribuição foi ter sido um “estágio” para futuros líderes. Trabalhou
com homens um pouco mais cultos e conhecedores do mundo que os líderes
da primeira e segunda ondas, e sugeriu-lhes um modelo pentecostal mais
culturalmente solto. Deu-lhes também uma formação indispensável para que
se tornassem independentes: segundo um ex-pastor, “a primeira coisa que
aprendi na Nova Vida foi como levantar uma boa oferta”.[17] Em sintonia
com isso, a mensagem devia ser sempre positiva. Era o transplante do
que havia de mais recente na religião americana, no estilo dos novos
pregadores televisivos. A Vida Nova foi berço de três grupos da terceira
onda: a IURD, a Igreja Internacional da Graça de Deus (fundada por
Romildo R. Soares, cunhado de Edir Macedo, após um cisma na IURD) e a
Igreja Cristo Vive.
Uma influência
significativa na Igreja de Vida Nova e no surgimento do movimento
neopentecostal como um todo foi a incipiente renovação carismática
norte-americana. Esse movimento surgiu de modo distinto no início dos
anos 60 com a ocorrência de fenômenos pentecostais fora das estruturas
denominacionais do pentecostalismo clássico, ou seja, nas chamadas
igrejas históricas e em grupos não denominacionais.[18] No Brasil, a
chamada “renovação” produziu divisões em quase todas as igrejas
históricas, com a criação de grupos como a Igreja Batista Nacional, a
Igreja Metodista Wesleyana e a Igreja Presbiteriana Renovada. Para
tornar esse quadro ainda mais complexo, os anos 60 também testemunharam o
aparecimento da “renovação carismática católica”, que, apesar de uma
relação nem sempre fácil com a hierarquia, tem adquirido crescente
visibilidade em anos recentes. Em contraste com o pentecostalismo
clássico, o movimento carismático, seja em sua modalidade evangélica ou
católica, tem atraído principalmente pessoas de classe média, daí a sua
maior preocupação com o decoro e a respeitabilidade do que se vê nos
grupos populares.
Ao lado das
manifestações espirituais extraordinárias como glossolália, curas,
profecias e exorcismo, os carismáticos e neopentecostais brasileiros
caracterizam-se por uma forte ênfase na “teologia da prosperidade,”
outra influência norte-americana, difundida por líderes como Kenneth
Hagin e Benny Hinn. Este tem sido um dos principais elementos do maior
fenômeno ocorrido no protestantismo brasileiro nas últimas décadas: a
Igreja Universal do Reino de Deus (IURD).[19] A igreja foi fundada por
Edir Macedo (nascido em 1944), filho de um comerciante fluminense.
Macedo trabalhou por 16 anos na Loteria do Estado do Rio de Janeiro,
período em que subiu de contínuo até um cargo administrativo. De origem
católica, ele ingressou na Igreja de Nova Vida na adolescência, deixando
essa igreja para fundar a sua própria, inicialmente denominada Igreja
da Bênção. Em 1977, deixou o emprego público para dedicar-se
integralmente ao trabalho religioso. Nesse mesmo ano surgiu o nome
Igreja Universal do Reino de Deus e o primeiro programa de rádio. Macedo
residiu nos Estados Unidos de 1986 a 1989. Quando retornou ao Brasil,
transferiu a sede da igreja para São Paulo e adquiriu a Rede Record. Em
1990, a IURD elegeu três deputados federais. Macedo esteve preso por
doze dias em 1992, sob a acusação de estelionato, charlatanismo e
curandeirismo.[20] O acontecimento que deu maior publicidade à IURD nos
últimos anos foi o episódio do “chute na santa,” quando, em um programa
de televisão transmitido em 12 de outubro de 1995, o bispo Sergio von
Helde referiu-se de modo desairoso à virgem Maria, dando alguns chutes
numa imagem da mesma.[21]
Outro grupo
neopentecostal que também dá grande ênfase à teologia da prosperidade e
tem despertado muito atenção da imprensa nos últimos meses é a Igreja
Renascer em Cristo, fundada em 1985 pelo “apóstolo” Estevam Hernandes e
sua esposa, a bispa ou “episcopisa” Sônia Hernandes. À semelhança de
outros líderes pentecostais, Estevam teve uma origem humilde como filho
de um jardineiro de cemitério e começou a trabalhar aos 7 anos, fazendo
carreto em feiras livres. Mais tarde, desiludido com o catolicismo,
filiou-se a uma igreja pentecostal, onde conheceu a futura esposa. Sete
anos depois, casaram-se e decidiram fundar sua própria igreja, que hoje
conta com cerca de 50 mil fiéis e mais de 200 templos.[22] À semelhança
dos pastores da IURD, o casal Hernandes tem grande habilidade em
conseguir contribuições dos fiéis; todavia, ao contrário de Edir Macedo,
ostenta com orgulho sinais de riqueza, como roupas caras, jóias e
automóveis importados. O casal é proprietário da rentável Rede Gospel de
Comunicação e procurou assumir o controle da Rede Manchete de
televisão.
Devido às suas
características intrínsecas e à sua capacidade de adaptação às
necessidades e expectativas de vastos setores da população brasileira, o
movimento neopentecostal está longe de perder o seu ímpeto. É possível
que surjam novos segmentos e os antigos grupos tomem rumos ainda
insuspeitados.
2. Características do neopentecostalismo
Obviamente, o
neopentecostalismo ou “pentecostalismo autônomo”[23] partilha das mesmas
convicções, valores e práticas do pentecostalismo clássico: ênfase nos
dons espirituais, especialmente os mais extraordinários (línguas,
profecias, curas); forte emotividade, especialmente nos cultos; ênfase à
pessoa e atividade do Espírito Santo; valorização da figura do líder (o
“ungido do Senhor”); preocupação constante com as forças do mal; e
grande ênfase ao conceito de “poder.”
Todavia, os
grupos neopentecostais distinguem-se da sua matriz ou por darem uma
ênfase incomum a determinados aspectos da herança pentecostal (por
exemplo, curas, revelações e exorcismo), ou por adotarem novas idéias e
práticas, muitas delas provindas dos Estados Unidos (como batalha
espiritual, o “evangelho” da prosperidade, maldição hereditária e assim
por diante). Aliás, um dos traços mais marcantes do neopentecostalismo é
sua criatividade, sua capacidade de inovação. No esforço de manter o
interesse dos fiéis e evitar a rotina, continuamente são apresentados
novos slogans, ensinos e práticas. O melhor exemplo é a Igreja Universal
do Reino de Deus, com suas correntes de oração e suas campanhas de
prosperidade (por exemplo, a “fogueira santa de Israel”).
É curioso como a
América do Norte continua a ser a fonte de inspiração para os
neopentecostais brasileiros, assim como o foi e continua sendo para os
pentecostais clássicos. Autores e pregadores como Kenneth Hagin, Morris
Cerullo e Benny Hinn têm exercido poderosa influência através dos seus
livros, vídeos, programas de televisão e visitas ao Brasil. Benny Hinn
tem sido especialmente influente por encarnar alguns dos valores mais
apreciados em muitos círculos neopentecostais, como o sucesso e a
prosperidade, apesar de muitos de seus ensinos serem questionados por
diferentes observadores. Há alguns anos os fenômenos ocorridos na famosa
Igreja do Aeroporto de Toronto, no Canadá, também despertaram enorme
curiosidade e desejo de imitação. Essa igreja inicialmente estava
filiada ao ministério Vineyard, fundado por John Wimber na Califórnia,
sendo depois desligada do mesmo devido aos seus excessos. A chamada
“bênção de Toronto” incluía práticas como gargalhadas incontroláveis (o
“riso santo”), cair no Espírito, ficar estendido no carpete, emitir sons
de animais (urros, latidos), tudo supostamente como conseqüência da
presença do Espírito Santo.
Vejamos de modo mais específico algumas características neopentecostais nas áreas doutrinária e prática.
2.1. Atitude quanto às Escrituras
A questão
básica, da qual decorrem todas as demais, tem a ver com o lugar ocupado
pelas Escrituras na teologia das igrejas neopentecostais. Três fatores,
entre outros, contribuem para tornar relativo o valor das Escrituras em
muitas igrejas:
(a) A ênfase na
experiência: quando a experiência pessoal se torna um critério de
verdade, a Escritura tende a ficar em segundo plano; se, por exemplo,
uma determinada prática produz resultados ou faz a pessoa sentir-se bem,
isso é o que importa.
(b) O apelo a
revelações: obviamente, se alguém acredita que Deus continua a
revelar-se de maneira direta, imediata, isso tende a relativizar as
Escrituras; elas não mais são a revelação final de Deus, a única regra
de fé e prática para o crente. Quando um pregador diz “o Senhor me
revelou ou o Senhor me mostrou isso ou aquilo”, tudo pode acontecer, e é
proibido questionar, pois é palavra do Senhor.
(c) Uso
questionável das Escrituras: quando as Escrituras são utilizadas, muitas
vezes isso é acompanhado de interpretações tendenciosas, uso seletivo
de certas passagens ou ênfases inadequadas. Muitos ensinos e práticas
neopentecostais têm alguma fundamentação bíblica, mas recebem uma ênfase
muito maior do que se vê nas próprias Escrituras, no ensino de Cristo e
dos apóstolos ou na prática da igreja primitiva. Veremos adiante alguns
exemplos disso.
Nesse aspecto, os reformadores do século 16 têm muito a nos ensinar:
Em primeiro
lugar, com o seu princípio fundamental de “sola Scriptura”. Ou seja,
reagindo contra as tradições extrabíblicas do catolicismo medieval, os
reformadores afirmaram que somente a Escritura deve ser a norma, o
padrão de fé e de conduta para o cristão. Tudo o que não está de acordo
com as Escrituras ou que não pode ser claramente fundamentado nelas,
deve ser firmemente rejeitado.
Em segundo
lugar, através de princípios saudáveis e equilibrados de interpretação
bíblica: não isolar o texto do seu contexto, considerar o que a Bíblia
inteira diz acerca de um determinado assunto (a “analogia da
Escritura”), levar em conta as circunstâncias em que o texto ou livro
foi escrito e a intenção original do autor (método
histórico-gramatical).
Em terceiro
lugar, mostrando que não se deve fazer separação entre o Espírito e a
Palavra. Sendo o Espírito Santo o autor último das Escrituras, ele não
pode dizer uma coisa na Bíblia e outra coisa através de revelações
especiais que conflitam com a Escritura. Por exemplo, ele não pode dizer
na Bíblia que ninguém sabe o dia da volta de Cristo e depois revelar a
alguém que Cristo vai voltar no ano tal e tal.
Neste último
ponto, Calvino foi muito enfático em suas Institutas (Livro I, Capítulo
IX), ao condenar os “entusiastas” ou “libertinos” que queriam chegar a
Deus por outros meios que não as Escrituras. O reformador aponta para a
reverência demonstrada pelos primeiros cristãos para com a Escritura e
mostra a contínua importância, necessidade e validade da Palavra de Deus
escrita (2 Tm 3.16-17). O Espírito Santo foi enviado, não para revelar
coisas novas, mas para lembrar aos cristãos o que Cristo havia ensinado
(Jo 14.26). Qualquer “revelação” que vá além do evangelho bíblico deve
ser rejeitada como mentirosa (Gl 1.6-9). O Espírito Santo sempre atua em
consonância com as Escrituras, que dele provêm. Por outro lado, é o
testemunho interno do Espírito que nos permite reconhecer a Escritura
como Palavra de Deus e experimentar a sua eficácia.
2.2 Ensinos e práticas
Vejamos alguns
ensinos e práticas neopentecostais que revelam um entendimento
equivocado das Escrituras ou ênfases incompatíveis com as mesmas. É
importante lembrar que nem todas as igrejas apresentam as mesmas
ênfases.
(a) Confissão
positiva: esse ensino também é conhecido como “palavra da fé”. Segundo o
mesmo, se o cristão crê firmemente em algo e o declara de modo convicto
e explícito, aquilo que ele confessa irá acontecer, pelo poder da fé.
Assim, a fé é vista como um poder que tem eficácia em si mesmo. A idéia é
que Deus já nos deu as suas bênçãos, as suas promessas. A única coisa
que temos a fazer é nos apropriar das mesmas, pela fé. A fé libera o
poder e as bênçãos de Deus. Sem essa fé, Deus nada pode fazer. E o que
ativa essa força ou poder da fé são as palavras. Se alguém fala palavras
de fé, obtém bons resultados e vice-versa (confissão positiva ou
negativa). Tudo o que nos acontece é conseqüência direta das nossas
palavras. (Esses ensinos foram emitidos por autores como Kenneth
Copeland e Kenneth Hagin.)[24]
Esse conceito
faz da fé e das palavras de fé algo mágico, supersticioso, como um
talismã. A Escritura ensina que a fé é um dom de Deus e que Deus atua e
abençoa mediante a fé ou independentemente dela, como Senhor que é. Por
outro lado, fé não significa força ou poder, mas uma atitude de
confiança e dependência de Deus.
Associada com a
confissão positiva está a idéia de posse, herança, como nas palavras de
um conhecido corinho: “Tudo que o Senhor conquistou na cruz, é direito
nosso, é nossa herança”. Assim, o crente deve “exigir” que Deus conceda
as bênçãos e cumpra as promessas. Com isso, o relacionamento com Deus
deixa de ser baseado na sua livre e soberana graça para concentrar-se em
direitos e exigências.
(b) Saúde e
prosperidade: essa é outra criação norte-americana que tem exercido um
fascínio tremendo em um país carente de recursos como o Brasil. Na
realidade, essa ênfase está mais de acordo com os valores da cultura
americana do que com os valores do evangelho. Certamente Deus promete
bênçãos materiais aos seus filhos, entre as quais se incluem saúde
física e prosperidade financeira. Todavia, isso nunca foi uma parte
central da mensagem pregada por Cristo ou pelos apóstolos. Esses temas
nunca tiveram nos ensinos e na pregação deles o destaque que ocupa no
culto e na vida de tantas igrejas modernas.
Um dos aspectos
mais preocupantes é a insistência unilateral em bênçãos materiais,
muitas vezes em detrimento de saúde e prosperidade na vida espiritual,
no relacionamento com Deus, na vida emocional, nas relações familiares,
na vida comunitária. Essa preocupação materialista e individualista
casa-se muito bem com os interesses da sociedade de consumo, mas não com
o evangelho que nos conclama a repartir, a ser solidários com os
outros, que nos convida a amar a Deus pelo que Deus é, independentemente
do que ele possa nos dar.
A Igreja
Universal do Reino de Deus (IURD) é a que mais se destaca nessa área,
pois que toda a sua atividade gira em torno do trinômio
exorcismo-cura-prosperidade. Daí vermos, pela TV ou em outros ambientes,
cenas desagradáveis de pregadores que condicionam o recebimento de
bênçãos à entrega das maiores ofertas possíveis, ou, como costumam
dizer, ao “sacrifício” dos fiéis. Esse não é o evangelho da graça
anunciado por Cristo e pregado pela igreja apostólica, um evangelho que
não se baseia em merecimentos humanos ou conquistas humanas, mas que se
fundamenta no amor de Deus oferecido gratuitamente em Cristo. (“De graça
recebestes, de graça daí” – Mt 10.8b; ver 1 Co 2.12). Jesus ensinou
claramente os seus discípulos a não buscarem prioritariamente bênçãos
materiais, e sim a buscarem em primeiro lugar o reino de Deus e a sua
justiça, “e todas estas coisas [alimento, vestes, saúde] vos serão
acrescentadas” (Mt 6.33).
(c) Batalha
espiritual:[25] dentre as várias correntes de batalha espiritual, uma
das mais populares no Brasil é aquela liderada por C. Peter Wagner,
diretor e professor da Escola de Missões Mundiais do Seminário Fuller,
na Califórnia. Wagner é também um dos principais expoentes do “movimento
do crescimento da igreja”. Um ensino característico dessa corrente é a
noção de “espíritos territoriais”, isto é, demônios que mantêm
determinadas regiões geográficas sob o domínio da incredulidade e do
pecado. No Brasil, uma das principais divulgadoras dessas idéias é a
autora Neuza Itioka, que já escreveu vários livros sobre o assunto.
A batalha
espiritual vê a realidade acima de tudo em termos de um conflito mortal
entre Deus e o maligno, tendo como campo de batalha o mundo e as vidas
dos crentes. Deus passa a ser visto como um Deus guerreiro, um “homem de
guerra”, e existe um grande número de corinhos que explora essa
temática. Com muita freqüência essa questão é abordada em termos
triunfalistas: como o Senhor está ao nosso lado, ninguém pode conosco,
nenhum mal nos atingirá, como afirmam certos versículos dos Salmos e
outros livros. Nos últimos anos, incorporaram-se ao vocabulário
evangélico certas expressões que antes nunca haviam sido usadas pelos
crentes: “Eu repreendo isso ou aquilo” ou “Está amarrado em nome de
Jesus”.
Novamente, o
problema com esse ensino não é o seu caráter extrabíblico. A Escritura
certamente fala, e muito, sobre o conflito entre Deus (e seus filhos) e
as hostes do mal, como na conhecida passagem de Efésios 6.10-20. O
problema está em certas implicações ou conclusões, nem sempre
fundamentadas de modo claro nas Escrituras, mas derivadas da imaginação
fértil dos autores. Alguns exemplos: demônios territoriais, cristãos
possuídos pelo demônio, demônios com nomes fantasiosos, demônios
coloridos ou mal-cheirosos e assim por diante. Nada disso é apoiado
pelas Escrituras.
Outra tendência
preocupante é relacionar todo problema ou pecado com algum demônio. Se a
pessoa é preguiçosa, está possuída ou influenciada pelo demônio da
preguiça; se é ansiosa ou depressiva, está sob a influência do demônio
da depressão. Daí a preocupação em expulsar ou em amarrar demônios a
torto e a direto. Esses ensinos, que muitas vezes não passam de meras
opiniões, deixam de levar em conta o ensino bíblico de que vivemos em um
mundo decaído, que sofre as conseqüências do pecado e do juízo de Deus
contra o mesmo. Nem todo “mal” vem do demônio: há males que decorrem das
nossas limitações, das circunstâncias do mundo (catástrofes naturais,
por exemplo, que atingem tanto crentes quanto descrentes) e o próprio
Deus pode enviar males com propósitos de juízo ou de disciplina (Is
45.7; Hb 12.4-13).
A preocupação
desmedida com as forças malignas não reflete o ensino equilibrado das
Escrituras, cria temores desnecessários nas pessoas e pode ser um
instrumento de manipulação emocional. Por outro lado, pode minimizar a
responsabilidade individual ou coletiva por muitos pecados e erros: é
mais fácil justificar certas coisas atribuindo-as à ação do inimigo. A
obsessão pelo diabo também pode obscurecer a glória de Deus. Ainda que o
maligno seja poderoso, ele não é todo-poderoso, como às vezes se
imagina. Somente Deus é o Senhor supremo de todas as coisas. O próprio
demônio está debaixo da sua autoridade.
Certamente, não
devemos subestimar as forças espirituais do mal. O Senhor mesmo nos
ensinou a orar: “Livra-nos do mal”. Mas nessa luta temos de usar as
armas oferecidas pelo próprio Deus e não os artifícios humanos e as
práticas supersticiosas que têm sido apregoados por tantos.
(d) Maldição
hereditária: essa é outra área de sérias distorções. Toma-se um texto
isolado como Êxodo 20.5, onde Deus afirma que castiga a maldade dos pais
nos filhos até a terceira e quarta gerações, e se constrói toda uma
doutrina a partir daí, uma doutrina que nunca foi ensinada por Cristo e
pelos apóstolos. Para a libertação ou quebra da maldição seria
necessário fazer uma árvore genealógica da família, identificar as
pragas, maldições, pecados e pactos com demônios feitos pelos
antepassados e anulá-los, quebrando-os e rejeitando-os em nome de Jesus
Cristo.
Porém, qual é o
ensino mais amplo das Escrituras sobre o assunto? Se é verdade que os
pecados de uma geração podem ter sérias conseqüências para os seus
descendentes, existem outras passagens sobre o assunto que devem ser
levadas em consideração. É o caso de Ezequiel 18, em que Deus mostra que
a responsabilidade moral é pessoal e individual: “A alma que pecar,
essa morrerá; o filho não levará a iniqüidade do pai...” (vv. 4b, 20).
Pela conversão e retidão de vida, o indivíduo está livre da “maldição”
dos pecados de seus antepassados (vv. 14-19). O segundo mandamento
(Êxodo 20.5) prevê a visitação do juízo divino sobre os descendentes de
ímpios que também aborrecem a Deus como seus pais. Além disso, o Novo
Testamento nos ensina que Cristo resgatou os crentes da maldição da lei
(Cl 2.13-15; Gl 3.13) e que nenhuma condenação resta para os que estão
em Cristo Jesus (Rm 8.1).
Isso nos leva a
um outro ponto importante, que é a tendência de muitos neopentecostais
de tirarem conclusões apressadas de passagens do Antigo Testamento, sem
procurar entendê-las à luz da revelação mais plena de Deus em Jesus
Cristo e no Novo Testamento. É preciso lembrar sempre que o Novo
Testamento é a chave para a interpretação do Antigo. Como Jesus disse:
“Ouvistes que foi dito aos antigos... eu, porém, vos digo...”.
(e) Exorcismos:
a maneira como a expulsão de demônios é praticada em muitas igrejas ou
mesmo em programas de televisão soa muito estranha à luz do ensino
bíblico sobre a matéria. Jesus ocasionalmente expulsou demônios e o
mesmo fizeram os apóstolos. Em igrejas como a IURD e outras, os
exorcismos são parte regular dos cultos, recebendo uma ênfase totalmente
desproporcional à sua importância. Novamente repete-se o mesmo padrão:
toma-se um ensino ou elemento bíblico e dá-se a ele uma ênfase muito
maior do que a encontrada nas próprias Escrituras.
Não raro, as
sessões de exorcismo transformam-se em verdadeiros shows cheios de
teatralidade, com a finalidade de impressionar o auditório. Os
exorcistas dialogam com o “demônio”, brincam com ele e submetem a pessoa
possessa a grandes humilhações, expondo o seu sofrimento diante de
todos. Curiosamente, a maior parte das pessoas possessas pertence ao
sexo feminino, como se as mulheres fossem mais pecadoras ou mais frágeis
espiritualmente que os homens.
(f) Profecias:
outra prática comum de certos grupos neopentecostais são as profecias,
supostamente recebidas mediante revelações. Com freqüência, tais
profecias expressam meros desejos ou expectativas do “profeta” em
relação a uma pessoa ou grupo, mas são proferidas em tom dogmático, como
se fossem tão inspiradas quanto a Bíblia. Muitas vezes, as profecias
não se cumprem, os seja, são falsas profecias, o que faz de seus
anunciadores falsos profetas, mas ninguém se lembra de pedir desculpas,
de reconhecer que errou, que não estava falando a palavra do Senhor.
Em seu livro
Evangélicos em crise, Paulo Romeiro cita uma profecia feita por Benny
Hinn no dia 16 de março de 1994, quando falava na Igreja Renascer, em
São Paulo.[26] Ele começou, dizendo: “O Deus Todo-Poderoso está me
dizendo que esta cidade de São Paulo vai se dobrar ao nome de Jesus”. A
seguir, ele afirmou que brevemente ocorreria a destruição dos poderes
satânicos que controlavam a cidade e que dentro de seis meses a
atmosfera espiritual de São Paulo iria começar a mudar. Como prova disso
uma mulher muito conhecida, que estava enfeitiçando milhares de
pessoas, iria morrer. Líderes políticos nasceriam de novo. Dentro de
dois anos (1996), os crentes iriam dizer: “Deus tem feito grandes
coisas”. Por fim, ele afirmou que Deus iria usar Estevam Hernandes para
ser uma influência poderosa sobre os líderes políticos do Brasil, e
concluiu: “Marquem minhas palavras. Não é Benny Hinn quem está falando.
Assim diz o Senhor!”
Uma área em que
as profecias continuam se multiplicando, apesar dos repetidos malogros
de predições anteriores, diz respeito à data da volta de Cristo. Isso
ocorreu de modo especial ao aproximar-se o ano 2000. Paulo Romeiro
também narra as afirmações feitas pela conhecida pastora Valnice
Milhomens no programa “Palavra da Fé”, transmitido em 1990 pela Rede
Bandeirantes.[27] Ela afirmou inicialmente: “Deus reservou para nossa
geração a plenitude de todas as coisas... Esta é a geração que verá cada
palavra que está escrita na profecia vindo ao seu cumprimento. Nos
próximos dez anos haverá mais profecias se cumprindo do que em todos os
anos passados”. A seguir, apelando para várias revelações e fazendo uma
série de cálculos aritméticos, ela concluiu que tudo se cumprirá na
presente geração (40 anos), que começou em 1967 e terminará no ano 2007.
(g) Questões
éticas: outra área que tem gerado preocupação quanto a algumas igrejas e
líderes neopentecostais refere-se ao aspecto ético. É claro que todo e
qualquer cristão está sujeito a cair, a cometer erros de maior ou menor
gravidade. Todavia, certas práticas são difíceis de justificar à luz dos
padrões bíblicos. Alguns exemplos: (1) Área financeira: existem igrejas
e ministérios que não são transparentes quanto à maneira como recolhem e
gastam as contribuições dos fiéis. Há alguns anos atrás, nos Estados
Unidos, houve alguns casos notórios de desonestidade que resultaram até
na prisão de um conhecido líder carismático, Jim Baker. Um caso famoso
de chantagem na área financeira foi protagonizado pelo conhecido
evangelista Oral Roberts. Será que no Brasil seria diferente? As
práticas da IURD e o estilo de vida do casal Hernandes não têm
contribuído para projetar uma boa imagem dos evangélicos junto à
sociedade brasileira. (2) Área política: o crescente envolvimento dos
neopentecostais com a política partidária não tem sido salutar para o
testemunho evangélico em nosso país. Apesar do discurso de defesa dos
interesses da comunidade evangélica ou da sociedade em geral, o que
provavelmente está em vista é a defesa de agendas bem mais específicas e
menos edificantes. Os precedentes nessa área não são nada animadores,
como a troca de votos por concessões de rádio na época do presidente
Sarney e a triste participação de evangélicos nas falcatruas do
orçamento do Congresso, há alguns anos. (3) Área moral: o culto à
personalidade que caracteriza certos movimentos e a noção de que não se
pode tocar no “ungido do Senhor,” abre as portas para que certos líderes
caiam em pecado e continuem a encontrar seguidores.
Conclusões
Muito mais
poderia ser dito sobre o movimento neopentecostal. Estes são apenas
alguns pontos salientes, que obviamente não esgotam o assunto. Por uma
questão de justiça, é preciso reconhecer que há muitos pastores, crentes
e igrejas neopentecostais que são íntegros, bem-intencionados e fiéis
ao Senhor. Esses irmãos têm sido instrumentos para a conversão e
transformação de vidas de milhares de brasileiros, muitos deles
anteriormente escravizados pelos vícios, vivendo em miséria e violência.
Um número incontável de pessoas tem encontrado nas igrejas pentecostais
e neopentecostais um ambiente de calor humano, dignidade e valorização
pessoal que jamais haviam experimentado até então. As igrejas
neopentecostais têm trabalhado entre grupos não alcançados pelas igrejas
tradicionais: de um lado, favelados, viciados, aidéticos, presidiários e
outras pessoas marginalizadas; de outro lado, atletas, artistas e
outros grupos mais elevados na escala social. Todavia, por mais que
admiremos estes elementos positivos e sejamos gratos a Deus por eles,
não podemos fechar os olhos para os aspectos preocupantes apontados
anteriormente.
Há 250 anos
viveu nos Estados Unidos o notável servo de Deus que foi Jonathan
Edwards (1703-1758).[28] Um legítimo descendente dos puritanos, esse
pastor e teólogo calvinista foi um dos instrumentos do Grande
Despertamento ocorrido nas décadas de 1730 e 1740. Edwards foi um atento
observador e crítico desse grande reavivamento, deixando suas
impressões nos diversos livros que escreveu sobre o assunto. Ele
constatou que o avivamento tinha aspectos positivos e negativos. De um
lado, conversões, consagração de vidas, mudanças nos relacionamentos,
atuação social; de outro lado, emocionalismo exacerbado,
superficialidade, manipulação por pregadores inescrupulosos, atração por
fenômenos espetaculares. Ele mesmo e a sua esposa tiveram experiências
que consideraríamos incomuns. Sua conclusão geral sobre o assunto é que
existem certos sinais, evidências ou frutos visíveis que demonstram se
uma determinada experiência religiosa é genuína ou não: convicção de
pecado, seriedade nas coisas espirituais, preocupação com a glória de
Deus, apego às Escrituras, mudança no comportamento ético, relações
pessoais transformadas e influência regeneradora na comunidade.
Portanto, o que
se espera de nós, crentes presbiterianos, herdeiros da tradição
reformada, diante do desafio do neopentecostalismo, é uma posição de
equilíbrio e coerência, procurando aprender com o que as novas igrejas
têm de positivo e saudável, mas rejeitando firmemente, com base nas
Escrituras e na fé cristã histórica, os desvios, os exageros, as
distorções humanas.
Algumas recomendações práticas:
a)
Procuremos ler bons livros sobre o assunto, principalmente aqueles
escritos de uma perspectiva reformada.[29] Infelizmente, existe muita
coisa ruim nas nossas livrarias evangélicas.
b) Sejamos como os crentes bereanos (Atos 17.11), julgando todas as coisas e retendo o que é bom (1 Ts 5.21).
c)
Observemos o conselho de Paulo, seguindo a verdade em amor (Ef 4.15) e
crescendo em tudo (inclusive na maturidade e discernimento) naquele que é
o cabeça, Cristo.
d) Sejamos estudantes sérios e criteriosos das Escrituras, dos nossos padrões doutrinários e da história da igreja.
--------------------------------------------------------------------------------
[1]
Ver o estudo da Comissão Permanente de Doutrina da IPB. Igreja
Universal do Reino de Deus: sua teologia e sua prática. São Paulo:
Editora Cultura Cristã, 1997, p. 20-21.
[2]
Ver Alderi S. Matos. Edward Irving: precursor do movimento carismático
na igreja reformada. Fides Reformata 1:2 (Jul-Dez 1996), p. 5-12.
[3]
Ver o estudo de Émile-G. Léonard, O iluminismo num protestantismo de
constituição recente (São Paulo: Programa Ecumênico de Pós-Graduação em
Ciências da Religião, 1988). Para o professor Léonard, “iluminismo”
significa misticismo, iluminação interior.
[4]
Para as origens teológicas e históricas do pentecostalismo
norte-americano, ver Donald W. Dayton, Theological roots of
Pentecostalism. Peabody, Massachusetts: Hendrickson Publishers, 1987.
[5]
Paul Freston. Breve história do pentecostalismo brasileiro. Em: Alberto
Antoniazzi e outros. Nem anjos nem demônios: interpretações
sociológicas do pentecostalismo. Petrópolis: Vozes, 1994, p. 70-71.
[6]
Fazendo um levantamento do protestantismo brasileiro em 1931, Erasmo
Braga curiosamente menciona apenas de passagem as igrejas pentecostais.
Todavia, os dados estatísticos que aduz ao final do livro mostram que a
Assembléia de Deus já despontava como uma das principais denominações
presentes no país. Erasmo Braga e Kenneth G. Grubb. The Republic of
Brazil: a survey of the religious situation. Londres: World Dominion
Press, 1932, pp. 69, 101s, 141.
[7]
Freston faz uma observação interessante sobre a Assembléia de Deus: no
período em questão (1910-1950), ela tornou-se a igreja protestante
nacional por excelência, sendo a única grande igreja evangélica a
implantar-se e irradiar-se fora do eixo Rio-São Paulo. “Breve História”,
p. 70-71.
[8]
Escrevendo em 1952, o professor Émile-G. Léonard opinava haver nas
Congregações Cristãs “uma profunda fraqueza, que faz com que não as
possamos considerar absolutamente protestantes” – o limitado papel
reservado à Bíblia. O protestantismo brasileiro: estudo de eclesiologia e
história social. 2ª ed. São Paulo: JUERP/ASTE, 1981, p. 350.
[9] Freston, “Breve História”, p. 72.
[10] Duncan Alexander Reily. História documental do protestantismo no Brasil. 2ª impr. rev. São Paulo: ASTE, 1993, p. 388-391.
[11]
Ibid., 376-378; Freston, “Breve História”, p. 124-25. Freston opina que
a filiação foi um “casamento de conveniências”. O CMI precisava de
pentecostais e Manoel de Mello, embora discordasse da teologia do CMI,
queria publicidade e auxílio para projetos sociais.
[12] Reily, História Documental, p. 378-79.
[13]
A Igreja Deus é Amor até hoje não utiliza a televisão, mas é
proprietária de uma rede de emissoras de rádio e transmite os seus
programas para toda a América Latina. Ver Leonildo S. Campos, O milagre
no ar: levantamento de técnicas persuasivas num programa radiofônico em
São Paulo. Simpósio – Revista Teológica da ASTE 5/2 (dezembro de 1982).
[14] Freston, “Breve História”, p. 71.
[15]
Nesse sentido, designa aqueles grupos pentecostais que surgiram fora
das grandes denominações brasileiras, pentecostais ou protestantes,
fundados e liderados por empreendedores religiosos que preferiram
estabelecer-se por conta própria, sem vínculos, inclusive, com missões
estrangeiras. Ver Leonildo Silveira Campos, Teatro, templo e mercado:
organização e marketing de um empreendimento neopentecostal. Petrópolis e
São Paulo: Vozes/Simpósio/UMESP, 1997, p. 18.
[16]
Leonildo Silveira Campos, “Protestantismo Histórico e Pentecostalismo
no Brasil: Aproximações e Conflitos,” em Na Força do Espírito: Os
Pentecostais na América Latina – Um Desafio às Igrejas Históricas (São
Paulo: Pendão Real, 1996), 84.
[17] Freston, “Breve História”, p. 132-33.
[18]
Ver Charismatic movement, em Stanley M. Burgess e Gary B. McGee
(orgs.). Dictionary of Pentecostal and Charismatic movements. Grand
Rapids: Zondervan, 1988, p. 130.
[19] Sobre a relação entre a IURD e a teologia da prosperidade, ver Freston, “Breve História”, p. 146-153.
[20]
Freston, “Breve História”, 153-56. Para uma análise completa da IURD em
toda a sua complexidade, ver a obra de Leonildo S. Campos, Teatro,
Templo e Mercado. Campos é professor da Universidade Metodista de São
Paulo, no programa de Ciências da Religião.
[21]
A revista Veja publicou uma entrevista com o bispo Von Helde na sua
edição de 1º de novembro de 1995, p. 50-53. O episódio do “chute na
santa” exacerbou ainda mais uma confrontação entre a IURD e a Rede Globo
que vinha ocorrendo há vários meses.
[22] Revista Veja, 20 de janeiro de 1999.
[23]
Por “pentecostalismo autônomo” são designadas as denominações
dissidentes do pentecostalismo clássico (oriundo dos Estados Unidos)
e/ou formadas em torno de lideranças fortes.
[24] Ver Hank Hanegraaff. Christianity in crisis. Eugene, Oregon: Harvest House Publishers, 1993, p. 61-102.
[25]
Sobre esse tema, ver o excelente estudo do Dr. Augustus Nicodemus
Lopes. O que você precisa saber sobre batalha espiritual. 2ª ed.
revisada e ampliada. São Paulo: Editora Cultura Cristã, 1998.
[26]
Paulo Romeiro. Evangélicos em crise: decadência doutrinária na igreja
brasileira. 3ª ed. São Paulo: Mundo Cristão, 1997, p. 88-89.
[27] Ibid., p. 183-84.
[28] Ver Alderi S. Matos. Jonathan Edwards: teólogo do coração e do intelecto. Fides Reformata 3/1 (Jan-Jun 1998), p. 72-87.
[29]
Por exemplo, John F. MacArthur, Jr. Os carismáticos: um panorama
doutrinário. 3ª ed. São José dos Campos: Editora Fiel, 1995.
Alderi Souza
de Matos é Professor de História da Igreja, Coordenador da área de
Teologia Histórica do Centro Presbiteriano de Pós-Graduação Andrew
jumper - Mackenzie
Graduou-se
em teologia pelo Seminário Presbiteriano de Campinas (1974), sendo
também bacharel em Filosofia pela Universidade Católica do Paraná (1979)
e em Direito pela Escola de Direito de Curitiba (1983). Após vários
anos de ministério no Paraná, fez seu mestrado em Novo Testamento
(S.T.M.) na Andover Newton Theological School , em Newton Centre,
Massashusetts, EUA (1988) e seu doutorado em História da Igreja na
Boston University School of Theology (1996).
Em
1997, o Dr. Alderi veio trabalhar no CPAJ, onde também atua como
co-editor da revista teológica Fides Reformata. É historiador oficial da
Igreja Presbiteriana do Brasil, pastor auxiliar da Igreja Presbiteriana
Ebénezer de São Paulo e articulista conhecido em diversos periódicos
acadêmicos e populares. Acaba de publicar seu primeiro livro, "Os
Pioneiros Presbiterianos do Brasil (1859-1900): Missionários, Pastores e
Leigos do Século 19", tendo também dois novos títulos em preparação.
Leia Mais em: http://www.genizahvirtual.com/2014/05/o-desafio-do-neopentecostalismo-e-as.html#ixzz31nUPRolA
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