Rodrigo Silva - Fonte - Criacionismo
Jesus
teria sido casado? Essa pergunta varreu as redes de comunicação nas últimas
horas devido a um fragmento antigo que parece desmentir a assertiva de que
Jesus era solteiro. Tive acesso a uma cópia prévia do artigo da professora de
Havard, Karen L. King (com contribuições de AnneMarie Luijendijk), que será
lançado em Janeiro de 2013 na Harvard
Theological Review. Nele a autora, de fato, apresenta um fragmento de
papiro escrito em Copta e datado do 4º século d.C., e que traz um diálogo entre
Jesus e Seus discípulos, no qual o Mestre usa a expressão “minha esposa”. Alguns
noticiários (felizmente não todos) divulgaram de modo sensacionalista que teríamos
aqui o primeiro indício de que, contrariando a posição oficial do cristianismo,
Jesus teria, sim, Se casado com Maria Madalena. Será isso verdade? Vamos
primeiramente ver o que diz o fragmento que mede 4 cm x 8 cm – algo pouco maior
que um cartão de visitas.
No
anverso, temos oito linhas incompletas com traços ilegíveis de uma nona linha e
outras seis linhas podem ser lidas no verso. É importante, contudo, dizer que
nem a autora nem eu somos especialistas em papirologia ou em língua copta,
portanto, as conclusões tanto da Dra. Karen quanto as minhas são sugeridas após
a avaliação técnica de outros expertos no assunto. Diz o texto:
Anverso:
1.
“não [para] mim. Minha mãe me deu a vi[da...”
2.
os discípulos disseram a Jesus: “[
3.
negar. Maria é digna de... [alguns sugerem que o correto seria: “Maria não é
digna de...]”
4.
...” Jesus disse a eles: “Minha esposa... [
5.
...ela será capaz de se tornar um
discípulo... [
6.
Deixe os iníquos incharem... [
7.
Quanto a mim, eu moro com ela de modo que... [
8.
uma imagem [
Verso:
1.
minha mã[e
2.
três [
3.
... [
4.
Diante do qual ...
5.
traços de tinta ilegíveis
6.
traços de tinta ilegíveis
Observações de
papirólogos e linguistas
Como
o papiro pertence à coleção particular de um anônimo, é difícil avaliar
completamente sua procedência ou sua autenticidade. Contudo, muitos elementos
apontam para a possibilidade maior de ser um texto verdadeiro, produzido na
Síria ou mais provavelmente no Egito e datado do 4º século d.C. Não sabemos
como o papiro chegou às mãos do colecionador nem em que condições foi
adquirido.
Essas
conclusões preliminares foram assinadas pelos Drs. Roger Bagnall, papirólogo e
diretor do Instituto para Estudo do Mundo Antigo de Nova Iorque, e AnneMarie
Luijendijk, da universidade de Princeton. Pelo menos dois outros especialistas,
no entanto, colocaram em dúvida a autenticidade do papiro, baseados
principalmente em algumas dificuldades gramaticais que foram posteriormente bem
respondidas. Portanto, temos uma chance muito grande de estar diante de um
documento autêntico. Novas pesquisas laboratoriais envolvendo a tinta do
manuscrito poderão lançar maior luz sobre essas questões.
Observações da Dra.
King
Não
sabemos o gênero desse documento, nem quem o escreveu. Colocou-se o nome
“Evangelho da Esposa de Jesus” (com a sigla em inglês GosJesWife) por mera
identificação provisória sem a pretensão de que seja realmente um evangelho
apócrifo ou que o título represente mesmo o cerne de seu conteúdo.
Pela
análise textual, é mais provável que a Maria mencionada no texto seja Maria
Madalena e não Maria mãe de Jesus, cuja referência aparece na primeira linha.
Mas, a despeito disso, o fragmento não é, definitivamente, uma “prova” ou
argumentação séria de que Jesus de Nazaré fosse casado. O papiro foi escrito
muito tempo depois dos dias de Cristo, e mesmo que seja a tradução de um
original que dataria do segundo século, ainda assim estamos tratando de uma
fonte muito tardia que nada teria a ver com o real fundador do cristianismo.
Esse
seria o mais antigo fragmento de manuscrito a mencionar que Jesus teria uma
esposa e seu original deve datar da segunda metade 2º século d.C. (posterior ao ano
150), o que mostra que o assunto já estava em discussão naquele tempo. As
razões da polêmica podem ser as mesmas que envolveram a questão do celibato e
do domínio sobre as paixões carnais que começaram a ser debatidas com força no
segundo século d.C., conforme vemos nos escritos de Clemente de Alexandria e
outros.
Existem
paralelos importantes entre esse texto e outros documentos como os evangelhos
canônicos e o evangelho de Tomé. No entanto, trata-se de um fragmento
inteiramente inédito, com um conteúdo ainda desconhecido e não inteiramente
concordante com os outros textos até agora descobertos.
Minhas observações
Em
primeiro lugar, achei tremendamente lúcidas as posições da Dra. Karen. Minha
única nota de ceticismo fica por conta da afirmação taxativa da autora de que
esse é o texto mais antigo a mencionar que Jesus teria uma esposa. As razões do
receio nesse ponto são simples: primeiramente temos de acentuar que o texto
encontrado data do 4º século d.C. É, portanto, conjectural a afirmação de que
se trata de uma tradução de outro texto grego original mais antigo e que esse
dataria do segundo século. Não há evidências adicionais para afirmar ou
desmentir essa tese; é uma possibilidade, não certeza absoluta. Segundo: ainda
que esse texto provenha do grupo de textos apócrifos surgido no 2º século, ele
não pode ser considerado o mais antigo apenas por mencionar explicitamente a
expressão “minha esposa”. Afinal, outros textos, como “o evangelho de Felipe”,
ainda que de modo indireto, dão a entender que teria havido alguma relação
marital entre Jesus e Maria, e não temos meios de saber qual seria mais antigo.
Fora isso, concordo com as demais análises da Dra. King.
Mas
é importante dizer que não há nada nessa descoberta ou nesse estudo que ameace
a ortodoxia cristã. Muito menos que se trate de algo jamais conhecido pelos
teólogos cristãos. Na verdade, o que temos é o eco de um grupo de cristãos
dissidentes (a maioria da cidade de Alexandria, no Egito) que criaram um
movimento chamado gnosticismo. A maioria dos especialistas acredita que esse
movimento surgiu no fim do primeiro século, início do segundo. Alguns poucos
autores, no entanto, estão começando a sugerir que raízes gnósticas já poderiam
ser vistas nos dias de Paulo! Seja como for, era um movimento marginal e não a
voz tradicional da Igreja Cristã primitiva.
Mas
o que eles ensinavam? Sua doutrina é muito complexa para ser explicada em
poucas palavras e eles eram multifacetados em muitos segmentos, cada um dizendo
uma coisa diferente da outra. Contudo, em termos gerais, podemos dizer que eles
foram muito influenciados pela filosofia helênica que dominou a cidade de
Alexandria e tentaram moldar o cristianismo com base nessa filosofia. Aqui é
importante esclarecer que a filosofia helênica tinha importantes diferenças em
relação àquela outra filosofia grega que surgiu no 6º século a.C., com os
pré-socráticos, e terminou com os tratados de Aristóteles. É claro que uma deu
origem à outra e há muitas continuidades entre ambas, mas nessa nova fase havia
exagerada mistura de filosofia com mitologia e misticismo religioso.
Os
gnósticos eram cristãos que a princípio queriam tornar o cristianismo mais
aceitável a seus compatriotas alexandrinos, especialmente os líderes e
intelectuais do povo. Seu grande problema, porém, era que o cristianismo
original, aquele pregado por Jesus e pelos apóstolos, chegava a ser patético
diante dos olhos do mundo grego de Alexandria. Ideias como encarnação,
ressurreição, morte expiatória numa cruz, etc. não tinham boa receptividade entre
os pagãos. Eram rejeitadas antes mesmo de se iniciar um diálogo. Então o jeito
foi adaptar o cristianismo para torná-lo mais aceitável e menos preconcebido. Em
outras palavras, o que fizeram foi modificar a figura do Jesus histórico (isto
é, aquele que realmente existiu e foi descrito nos primeiros evangelhos)
criando um Cristo gnóstico, mais elegante e aceitável ao povo grego.
Esse
novo Cristo, por exemplo, à semelhança de Sócrates e Platão, só ensinava por
meio de diálogos. Era místico e não sentia dor, nem sofrimento de espécie
alguma. Ele também trazia um ensino ou conhecimento secreto que somente pessoas
iniciadas poderiam conhecer. Daí o nome “gnósticos”, que vem da palavra grega gnôsis, isto é, conhecimento. Com isso, dava-se
um “jeitinho alexandrino” de explicar os ensinos menos aceitáveis de Jesus.
Eles diziam que aqueles eram ensinamentos pueris dados para a multidão
ignorante, mas o verdadeiro ensino fora dado, de modo secreto, apenas para os iniciados.
Negou-se também a morte de Jesus na cruz, afirmando que quem teria morrido, na
verdade, havia sido o homem Jesus, pois o espírito do Cristo teria voltado para
o Pai, no pleroma superior, onde viveriam os espíritos mais elevados.
Foi
nessa “onda” que surgiu também a necessidade de se criar uma esposa para Jesus de
Nazaré, a fim de fazer jus às ideias de que espíritos evoluídos estavam sempre
em pares (casais) e nunca sozinhos. O Cristo ou o Logos, que seria o espírito que teria dominado a mente do homem
Jesus, também teria uma consorte, uma deusa chamada Sofia!
E
assim vai a criatividade dos gnósticos, produzindo evangelhos tardios escritos
mais de cem anos depois da morte de Cristo e que hoje chamados de evangelhos apócrifos.
Como acentuou a própria Dra. King, esses textos não têm nada a ver com o Jesus
histórico, isto é, aquele que viveu no início do primeiro século e fundou o
cristianismo. Seu retrato, mais fiel está nos Evangelhos canônicos e nos demais
livros do Novo Testamento que não se preocuparam em maquiar Sua imagem para troná-Lo
mais aceitável ao judaísmo e/ou às exigências do mundo exterior.
Uma
nota final: é tremendamente exagerada e anacrônica a leitura que alguns autores
fazem dos evangelhos gnósticos afirmando que eles já discutiam, na antiguidade,
o papel da mulher na religião e na sociedade. Nada seria menos verdadeiro.
Tenho em minha casa o texto de todos os evangelhos apócrifos, e cruzando os
dados desse fragmento com o que dizem outros textos, como o Evangelho de Tomé,
por exemplo, o que percebo é que o contexto era a “posição de Maria Madalena
entre os discípulos” e não a posição da mulher “em geral” entre a sociedade. Os
gnósticos nem pensaram nisso.
Ademais,
embora houvesse tradições judaicas que encorajassem o celibato, o casamento era
visto como uma possibilidade igualmente abençoada (1 Qsa 1:4-10; Josefo, Antiguidades
18.1.5.21; Philo, Hipotética 11.14-). Além disso, em 1 Coríntios 7:9; 9:5 e em
1 Timóteo 3:2, Paulo defende o direito apostólico de ser casado e menciona os líderes
da Igreja (Pedro, os apóstolos e os irmãos do Senhor) como casados. Ora, se
Jesus fosse casado, a Igreja não teria motivos para esconder isso. Até o
Apocalipse fala do casamento entre Cristo e sua Igreja, uma imagem proscrita,
caso tentassem esconder um pretenso enlace entre Jesus e Madalena. Portanto, o
completo silêncio da igreja primitiva sobre esse assunto nos leva a crer não
que estavam escondendo uma verdade sobre o estado civil de Jesus, mas que Ele
não era de fato casado. Por outro lado, a multiplicação de textos na segunda
metade do segundo século sugerindo uma união marital com Maria Madalena só pode
ser uma adaptação ou criação literária tardia que nada tem a ver com a
verdadeiro Jesus de Nazaré.
(Rodrigo Silva é professor
no Unasp, apresentador do programa Evidências, doutor em teologia, especialista
em arqueologia bíblica e doutorando em arqueologia pela USP)
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