Fonte - http://normabraga.blogspot.com.br
"Cidadãos de bem", por que não?
Antes de mais nada, deixo claro que abomino a vingança pelas próprias mãos. A Bíblia o proíbe (Rm 12.9) e, em caso de crime, ordena que o Estado puna os criminosos (Rm 13.3-4), como expliquei aqui. Creio que Sheherazade também pensa assim, embora, em sua indignação, tenha se expressado de modo a dar espaço para as distorções desonestas. (Minhas opiniões sobre sua recente declaração podem ser resumidas nesse artigo de Reinaldo Azevedo.)
Trago um exemplo flagrante dessas distorções, vindo de nossos arraiais evangélicos. Em um artigo na internet, publicado em site mais que suspeito (palanque para teólogos liberais!), Sheherazade é comparada a Hitler e Stálin por adotar um discurso de "legitimação da eliminação do outro" que pretende "legitimar toda ação que escapa às fronteiras da justiça institucional". Para seu autor, "cidadão de bem" é "um construto, um instrumento que serve para para identificar, e principalmente selecionar, quem deverá ficar de fora do arco simbólico da ética". Em seguida, sem maiores explicações, passa a referências ao antissemitismo na Alemanha nazista e às condenações injustas citadas por Alexander Soljenítsin em O arquipélago Gulag.
São alhos com bugalhos! A ideia subentendida é de que Sheherazade adotou o mesmo discurso separatista usado nos regimes totalitários. A pequena diferença é que, no caso do menor, os crimes eram reais (o que não significa apoio ao justiçamento, repito!). O totalitarismo é uma máquina de invenção de crimes, uma realidade paralela que se impõe forjando passado, presente e futuro, para que seja mau aquilo que o governo chamar de mau. A discriminação dos bodes expiatórios, nesses regimes, obedece à lógica dos amigos e dos inimigos dos governantes, não à lógica da lei. E nosso país, depois de doze anos de petistas no poder, tem sido posto sob a primeira lógica - esta sim, totalitária e geradora de violências, sobre a qual o articulista nada fala.
Não me consta que Sheherazade tenha defendido justiçamentos, mas sim apontado para o fato de que eles são uma consequência direta da impunidade no Brasil. E quem pode punir os criminosos? Releia sua Bíblia: o Estado. A população do Rio de Janeiro já não aguenta mais ver a cara dos mesmos ladrões, dia após dia, assaltando as mesmas pessoas nas mesmas ruas em um ciclo de prende-e-solta sem fim. Entre os moradores, eles chegam a ser conhecidos pelo nome! E ninguém faz nada. Menores no Brasil são inimputáveis; os marginais maiores podem usá-los à vontade para o tráfico de drogas e demais crimes. Isso é injusto. O governo brasileiro deveria ter previsto que sua passividade (seria intencional?) um dia explodiria no retorno dos grupos de justiceiros - algo que só temos a lamentar.
Rachel se explicou melhor aqui, mas, para quem já percebeu a cruel ideologização do debate sobre a violência, nem precisava. O problema é que, acostumados com uma cultura de justificação do banditismo, os que sempre associam o criminoso ao "oprimido" acabam se voltando contra a mensageira, não contra a mensagem. Com isso, desviam a atenção dos reais responsáveis e transferem a culpa da violência para questões de linguagem: aqueles malditos conservadores que acreditam nos "cidadãos de bem"!
Alguns - cristãos incluídos - ficaram chocados com a frase da jornalista: "Está com pena? Leva o bandido para casa." Não gosto dessa formulação, de fato; mas, se queremos ser honestos, a fala deve ser entendida no contexto bem brasileiro da glamourização dos criminosos - que raramente recebe críticas indignadas, mas que, em um exame atento, é o corrosivo a esgarçar o tecido social há décadas em nosso país. Eis a razão de tanto ódio contra Sheherazade - seu apontar implacável, em cadeia nacional, para o que Olavo de Carvalho já tinha detectado em um de seus melhores artigos. Veja o que está por trás dessa pudica aversão ao "cidadão de bem":
Humanizar a imagem do delinqüente, deformar, caricaturar até os limites do grotesco e da animalidade o cidadão de classe média e alta, ou mesmo o homem pobre quando religioso e cumpridor dos seus deveres — que neste caso aparece como conformista desprezível e virtual traidor da classe —, eis o mandamento que uma parcela significativa dos nossos artistas tem seguido fielmente, e a que um exército de sociólogos, psicólogos e cientistas políticos dá discretamente, na retaguarda, um simulacro de respaldo "científico". (...) Por enquanto, se queremos ver o nosso Rio livre do flagelo do banditismo, a primeira coisa a fazer é não dar ouvidos àqueles que, por terem colaborado ativamente para a disseminação desse mal, por mostrarem em seguida uma total incapacidade de arrepender-se de seu erro, e finalmente por terem o descaramento de ainda pretender posar de conselheiros e salvadores, perderam qualquer vestígio de autoridade e puseram à mostra a sua lamentável feiúra moral.
A argumentação do acadêmico e do pastor seduz um bom número de cristãos justamente por causa desse "transbordamento" da esfera teológica para a esfera jurídica - e chego a crer que o apóstolo Paulo, na carta aos romanos, estava justamente tentando prevenir que os primeiros cristãos de Roma confundissem o perdão dos pecados com ausência de punição de crimes. Hoje, quase dois mil anos depois, cristãos contemporâneos - muitas vezes sem se dar conta - se escoram na cultura do politicamente correto, descendente do marxismo, para emitir ideias que desprezam a Bíblia, a tradição cristã e a sensatez. Esses crentes confusos se perguntam: ora, se todos são pecadores, como falar em "cidadãos de bem"? Simples: "cidadãos de bem" são os que não praticam crimes, não os que não cometem pecado. Todo mundo quebra a lei divina, mas nem todo mundo quebra leis humanas. São esferas diferentes, e a Bíblia prevê isso (leia Romanos de novo!). O perdão divino não anula a responsabilidade humana de punição ou reparação. Da mesma forma, o cidadão mais correto do mundo perante as leis humanas continua a ser um pecador abominável perante Deus, caso não se arrependa e não creia em Cristo. Contra todos os pecados, perdão de Deus e perdão entre seus filhos, mútuo; contra todos os crimes, punição estatal diante dos homens.
Anular a distinção entre esfera jurídica e esfera teológica tem sido a armadilha perfeita em que caem alguns cristãos que ainda precisam formar uma cosmovisão adequada. Pecador não deve ser confundido com criminoso. Agora, há um aspecto muito perverso na invenção da armadilha. Os adoradores da religião marxista não querem a divisão do mundo entre criminosos e não-criminosos. Essa divisão não só é vital para o Direito, para a Justiça, para a Lei, limites que todo revolucionário odeia; mas, acima de tudo, compete com outra, aquela pela qual eles juram: opressores e oprimidos. Na religião politicamente correta, essas são as categorias pelas quais se deve compreender o mundo e escolher seu "lado". Eis o quadro:
OPRESSORES são sempre a classe alta, o empresariado, a classe média, o branco, o heterossexual, o homem, a polícia.
OPRIMIDOS são sempre as classes baixas, o pobre, o empregado, o negro, o gay, a mulher, o bandido.
Se algum representante desses grupos está em desavença contra o outro, simples: o vitorioso deve pertencer sempre ao rol dos "oprimidos". Assim fica fácil fazer justiça, não é?
Esquerdistas muitas vezes têm um discurso empolado, cheio de palavras eruditas, mas o invólucro tortuoso apenas oculta esse simplismo imoral que embasa seus posicionamentos. Um simplismo que ativa reações previsíveis de empatia pelos oprimidos e ódio pelos opressores - não importa se, em cada caso em questão, as posições estejam invertidas: se é um negro a despejar preconceitos sobre um branco; se é um funcionário mentindo contra a empresa perante o juiz; se é um grupo de "terroristas sociais" vandalizando nas ruas até causar a morte de um inocente. Todos se erguem vociferosos contra a surra do menor (bandido oprimido), mas se calam diante da morte do jornalista Santiago (mídia opressora). Os valor da vida é medido e avaliado segundo o pertencer a uma "classe". Pessoas se tornam símbolos (explico isso melhor em meu livro A mente de Cristo). O levante dos Black Blocs - antiburguês, antissistema, antitudo enfim - parece desculpar qualquer eventual violência. Quem sente ou pensa assim é cúmplice da morte de Santiago, como bem mostram Reinaldo Azevedo e Solano Portela.
A Bíblia é clara: Romanos 3.23 ("todos pecaram e carecem da glória de Deus") e Romanos 13.3-4 ("os governantes não devem ser temidos, a não ser pelos que praticam o mal") são versículos que não se anulam. No primeiro, pecado é tudo o que atenta contra a lei de Deus; no segundo, "praticar o mal" é cometer crimes que precisam ser punidos pelo Estado. Isso é beabá de teologia. Só quem está contaminado pelo vírus politicamente correto é que não percebe a confusão.
Se você, cristão, não tem bradado por justiça, comece desde já; é seu dever tanto denunciar a interdição do debate quanto promovê-lo - sobre isso, leia esse artigo excelente de Franklin Ferreira, publicado na revista Teologia Brasileira. E atenção: você pode usar a expressão "cidadão de bem" para significar "pessoa que não comete crimes", desde que não atribua a isso uma conotação de pureza espiritual. Por outro lado, não pode confundir a percepção cristã de que todos somos pecadores com a imoralidade ideológica que nivela a todos em relação à lei humana, paralisando o uso da força punitiva e promovendo impunidade. Pregue o Evangelho para o bandido, mas não adote ideias que justifiquem seus crimes - algo que, no final, corromperá a própria pregação do Evangelho.
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