CRISTIANE SEGATTO
Surpresas da primeira geração de crianças a viver menos que os pais
Quando alguém aponta os malefícios da fast food, das bebidas açucaradas e dos biscoitos artificialmente coloridos e perfumados, nossa primeira reação é pensar que está difícil ser feliz nesse mundo patrulhado pelo politicamente correto. Há quem diga que se sente inibido de oferecer um simples chocolate ao filho em lugares públicos. Acredita que em pouco tempo o agrado poderá ser interpretado como tentativa de infanticídio e dar cadeia.
Nessa discussão, o radicalismo não ajuda. Seja ele politicamente correto ou incorreto. Toda criança deveria ser livre para comer um chocolate, um pirulito, um sorvete, um hambúrguer com batata frita de vez em quando. Desde que fosse, realmente, de vez em quando.
Na minha infância era assim: comida caseira a semana inteira. Suco de laranja, limão ou outra fruta espremida na hora. Água o dia todo. Nos finais de semana, uma coisa “diferente”. O “diferente” era uma garrafa de refrigerante dividida pela família toda no almoço de domingo, um pote pequeno de sorvete de sobremesa; um algodão doce ou uma maçã do amor no passeio ao zoológico.
Hoje o “diferente” é a comida de todos os dias, de todas as horas. Essa mudança cultural recente (provocada por várias razões, principalmente comerciais) é a causa da maior epidemia infantil da história: a epidemia de obesidade.
Uma excelente contribuição para enriquecer o debate é o documentário Muito Além do Peso, que chega aos cinemas na próxima semana. O filme dirigido por Estela Renner, produzido por Marcos Nisti e patrocinado pelo Instituto Alana, uma ONG que defende o bem-estar infantil, é uma investigação profunda do impacto da obesidade infantil na vida das famílias brasileiras.
Entre a produção do documentário e as pesquisas, Estela e sua equipe consumiram mais de dois anos. Percorreram o Brasil de norte a sul, leste a oeste. Entraram nas grandes cidades e nos pequenos municípios. Foram a comunidades rurais e a aldeias indígenas. Às casas de classe média baixa e aos apartamentos confortáveis dos grandes centros urbanos.
Numa das mais belas praias cariocas, uma menina pega um pimentão verde, revira o legume como se visse aquela forma estranha pela primeira vez e arrisca dizer o nome dele:
-- Rabanete?
Quando o teste é feito com uma berinjela, a aposta é a mesma.
--- Rabanete?
Numa outra cidade, um garoto de classe média alta pega um mamão, vira a fruta de um lado para outro e dá o palpite:
--- Abacate?
Quando examina uma ameixa bonita e suculenta, diz:
-- Manga?
Eles não são exceção. A surpresa das crianças diante das frutas e legumes mais banais se repete em várias regiões do país. Mandioquinha, abobrinha, chuchu, beterraba...Todos ilustres desconhecidos
A obesidade avança pelo país de forma dramática. Mais de um terço das crianças brasileiras (33,5%) tem sobrepeso e obesidade. O principal mérito do filme é apontar uma questão urgente, muitas vezes subestimada, e comprovar que a epidemia se instalou em lugares aonde ninguém chega – nem governo, nem sociedade organizada, nem formadores de opinião.
Por causa da obesidade, a atual geração de crianças pode se tornar a primeira na história a viver menos que os pais. Vários estudos de saúde pública realizados nos Estados Unidos e em outros países têm demonstrado isso. Esqueça os ganhos de longevidade comemorados nos últimos anos e a expectativa de ter uma grande parcela da população vivendo bem aos 100 anos. A obesidade está devorando o excesso de otimismo.
Essa projeção, que pode parecer exagerada, torna-se palpável em algumas cenas do filme. Crianças de 9 ou 10 anos vivem como velhos, imóveis e cheios de doença. Na minha infância – e provavelmente na sua – a grande preocupação das mães era cuidar de joelhos ralados, braços quebrados, dentes perdidos nas brincadeiras de rua.
Bem diferente do que acontece hoje. No filme, um menino olha a estante cheia de brinquedos e diz: “Tenho várias bolas. Não gosto de jogar porque faz cansar”.
Atualmente, avós e netos vivem a mesma condição de saúde. Podem discutir sobre os mesmos sintomas, os mesmos efeitos colaterais dos remédios, cirurgias, próteses. Assim como os idosos, crianças que sequer chegaram à adolescência sofrem de trombose, artrite, diabetes, hipertensão, triglicérides, colesterol e ácido úrico elevados.
O primeiro contato com refrigerante acontece na mamadeira. Depois vêm os biscoitos, os salgadinhos, os fast foods, os congelados. Uma cultura de imobilidade e acúmulo de produtos alimentícios de baixa qualidade em despensas abarrotadas fazem as crianças chegarem aos 70 quilos aos 10 anos de idade.
E aí começa a cobrança para que elas emagreçam. Uma cobrança cruel porque todo mundo sabe que perder peso é dificílimo. A cada cinco crianças obesas, quatro permanecerão obesas na idade adulta.
O único jeito de impedir que o presente e o futuro das crianças sejam destruídos pelos excessos é ensiná-las a comer direito desde sempre. Conheço muitos bebês que aprenderam a apreciar o sabor das frutas e dos legumes desde cedo. Sem pressão, sem gritaria. Simplesmente aprenderam a viver assim, foram fisgados pelos sabores e não sabem o que é a vida sem eles.
Na classe média alta, isso é absolutamente possível. Depende apenas da boa vontade e da cultura alimentar dos pais – o que nem sempre existe. A parte mais cruel da história ocorre entre os mais pobres, entre aqueles que não têm escolha.
Nas áreas rurais, ninguém mais planta para comer nem vive do extrativismo. O filme mostra supermercados flutuantes chegando aos vilarejos do Pará. Os moradores saem dos barcos com as sacolas abarrotadas de guloseimas, biscoitos, leite em pó.
Nas periferias urbanas, as pessoas compram o que podem. E o que podem comprar é sempre o que há de pior para a saúde. “Os alimentos bons para a saúde (os mais frescos, pouco processados) são os mais caros e os ruins são os mais baratos. É uma inversão que precisa mudar”, diz no filme o médico Enrique Jacoby, conselheiro de nutrição da Organização Mundial da Saúde (OMS).
Se a obesidade infantil continuar a crescer, os mais pobres vão morrer primeiro. Os mais ricos podem durar um pouquinho mais – mas viverão dias sem sentido, sem qualidade. Não haverá sistema de saúde capaz de arcar com tantos custos. Todos nós – aqueles que têm bons hábitos alimentares e os que não têm – pagaremos a conta dessas doenças em forma de impostos.
Nenhuma questão de saúde é mais urgente que a obesidade. O primeiro passo para promover a mudança cultural necessária é conhecer o problema de perto. Muito além do peso é uma tremenda contribuição para isso. Assista e me conte.
A comida de verdade precisa voltar a fazer parte da nossa vida. Hoje.
O que acha? Conhece alguma criança obesa? O que a sociedade deve fazer para reverter a maior epidemia infantil da história? Queremos ouvir sua opinião.
(Cristiane Segatto escreve às sextas-feiras)
Fonte - Revista Época
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