Douglas Reis
Do Blog Questão de Confiança
Os
adventistas acreditam na permanência dos dons espirituais (1 Co 12:4-7;
13:8-10) e compreendem que o dom de profecia é vigente entre o povo de
Deus (1 Co 13:8; 14:5; Jl 2:28), constituindo-se um poderoso instrumento
orientador. Reconhecem ainda que Ellen G. White (doravante, EGW), uma
das pioneiras e mentoras do movimento, recebeu o dom de
profecia, empregado ao longo de seu ministério de praticamente 70 anos.
Uma análise do que EGW escreveu com os ensinamentos bíblicos revelaria a
harmonia entre eles e sua coerência.
Entrementes,
desde sua própria época até à contemporaneidade, EGW sofre críticas das
mais diversas. Mesmo entre os professos adventistas, há aqueles que,
velada ou abertamente, por ignorância ou decisão racional (ista), têm
encontrado dificuldades de crer em seus escritos. Nesse espaço,
refletiremos sobre algumas das motivações para isso.
Possivelmente, existiriam
tantas motivações quanto há críticas. Para facilitar nossa reflexão,
condensamos e categorizamos os fatores que levam à descrença e
apresentamos algumas podenderações. Cremos que mesmo os
não-adventistas, quer simpatizantes com o movimento ou seus ardorosos
opositores, poderão se beneficiar dessas reflexões, uma vez que se
encontram em posição distante o suficiente para avaliar os argumentos e
tirar suas conclusões.
Benefício
maior terão os adventistas que, caso concordem com a posição oficial da
denominação, poderão (1) reconhecer as dificuldades de seus
companheiros de jornada, (2) analisar os riscos que sua fé corre e (3)
encontrar argumentos para continuar crendo; caso se sintam inclinados a
descrer da autoridade profética de Ellen White, terão oportunidade de
(1) reconhecer suas dúvidas, (2) refletir sobre suas motivações para
descrer e (3) honestamente tomar um posicionamento claro, em face da
natureza do adventismo (falaremos sobre esse ponto adiante).
Como
esse texto é um ensaio popular e não um trabalho acadêmico, tomamos
algumas liberdades. Uma delas, visível desde as primeiras linhas, é a
abordagem despojada, o que facilitará um maior número de leitores a que
tenham acesso à argumentação. Visamos a apresentação do assunto em
linhas gerais, sem gastar tempo com detalhes técnicos, que podem ser
encontrados em muitos recentes trabalhos de pesquisa. Ao mesmo tempo,
optamos por uma linguagem mais amena, para que ninguém se sinta
ofendido, embora, em alguns momentos, a veemência na defesa de alguns
pontos seja requerida. Mas nunca o fazemos para magoar ou causar
polêmica per si. Sinceramente, objetivamos apresentar a "fé que
uma vez por todas foi entregue aos santos" (Jd 3) e admoestar àqueles
que estejam ensinando "outra doutrina", sempre com "com consciência boa,
e de fé, sem hipocrisia" (1 Tm 1:3,5).
Feitas
as considerações preliminares, passo à apresentação dos motivos mais
frequentes para a rejeição dos escritos de EGW entre os adventistas:
1. Os escritos de EGW representam apenas a “luz menor”; devemos manter nossa fé na Bíblia:
Os adventistas liberais na década de 1970s (e antes), apegaram-se à
declaração da autora para justificar um rebaixamento de seus escritos,
como se eles fossem inspirados em grau menor, em relação à Bíblia. Outro
caso famoso: para justificar a disparidade de suas próprias opiniões
com as de EGW, o teólogo adventista Desdemond Ford argumentou que ela
teria apenas autoridade pastoral. De fato, seria correto conceber
que EGW recebeu inspiração menor se comparada a dos profetas bíblicos? É
precária a argumentação, porque teríamos de admitir que a Inspiração é
um fenômeno gradual, coisa estranha à Bíblia (2 Tm 3:15; note a
expressão: "Toda escritura é inspirada", afirmando que os escritos
inspirados são de mesma natureza, a despeito de seus enfoques e gêneros
literários distintos). Os autores bíblicos sempre se consideraram
inspirados, porque reconheciam a atuação do Espírito em suas mentes,
embora não explecitem ou detalhem o modus operandi do fenômeno.
Há escritos inspirados ou não inspirados; nada como mais ou menos
inspirados. A expressão "luz menor" vem sendo entendida pela maioria
dos teólogos adventistas em seu aspecto funcional: assim, a luz
menor possuiria aplicação mais restrita, ou seja, esclarecer, demonstrar
e aplicar conceitos mais gerais, encontrados na "luz maior", a Bíblia.
Ainda assim, na prática, quando alguns alegam pejorativamente que os
escritos de EGW são apenas a "luz menor", pressupõem um conflito
insuperável entre eles e as Escrituras, ou pelo menos, a sua maneira de
compreendê-las;
2. Os escritos de EGW contradizem a Bíblia, apresentando detalhes ausentes do texto sagrado:
Na década de 1990s, Steven Daily escreveu sobre como deveria ser o
adventismo voltado para a próxima geração. Um dos pontos sensíveis é
resolver as tensões entre a Bíblia e os escritos de EGW decidindo-se por
ficar sempre ao lado do primeiro livro. Para Daily as tensões não
apenas são reais, mas insolúveis. Portanto, resta-nos descartar qualquer
coisa proveniente da autora da qual se suspeite (mesmo que minimamente)
contradizer a Bíblia. Porém, a proposta ignora que se dois tipos de
escrito, admitidamente inspirados, mostram-se contraditórios, então ou a
própria inspiração é questionável ou, ao menos, um deles não poderia
ser considerado inspirado. Nesse sentido, vale o conselho de Paulo em 1
Ts 5:19-21, sobre avaliar as profecias, que alguns tomam desavisadamente
como se o cristão devesse experimentar de tudo e "reter o que é bom". O
contexto limita o exame à manifestações proféticas, que devem ser
avaliadas conforme sua conformidade total às demais escrituras. Cf.: Is
8:19-20, 1 Jo4:1. Tudo indica que Daily já fez a escolha dele em favor
da última opção. Claro que se trata de um falso dilema
contrapor os testemunhos às Escrituras. Mesmo porque, se EGW repetisse
exatamente as mesmas orientações encontradas na Bíblia, não
precisaríamos em absoluto do que ela escreveu! A Verdade é progressiva
(2 Pe 1:19). Em seu discurso profético (Mt 24), Jesus tomou vários
pontos dos escritos de Daniel e outros profetas vétero-testamentários.
Por seu turno, Paulo reelaborou os conceitos do discurso de Cristo e
ainda encontramos ampliações dele no livro de Apocalipse. É natural que o
profeta posterior expanda seus antecessores. O próprio Jesus criticou a
prática de valorizar profetas passados em detrimento dos contemporâneos
(Mt 23:29-30), ao passo que cada profeta é o teste para a devoção
obediente de sua geração (v. 34-35). Em parte, essa confusão se
estabelece devido a falsos conceitos relacionados às influências da
cultura sobre os escritos de EGW;
3.
Os escritos de EGW representam a visão particular da autora, uma
senhora vitoriana que viveu num contexto de evangelicalismo tradicional:
a compreensão do contexto cultural em que viveu determinado profeta
sempre é útil para compreensão de sua mensagem. Infelizmente, a Alta
Crítica dos séculos XVIII e XIX eliminou o fator sobrenatural da
Inspiração, creditando a matéria bíblica apenas ao elemento humano. As
Escrituras deixaram de ser a Palavra inspirada por Deus para se tornar a
palavra de homens místicos. Não se tratava do que Deus dizia, mas do
que diziam acerca dEle. O método histórico-crítico, com seus
pressupostos naturalistas, ainda sobrevive e, infelizmente, influencia
teólogos adventistas, que o adotam integralmente ou de forma adaptada.
Como não poderia deixar de ser, a consequência natural é estender essa
compreensão aos escritos de EGW, limitando-os ao seu próprio cercado
histórico bem delimitado. Quando se parte dessas pressuposições, tanto a
Bíblia quanto os testemunhos têm pouco a dizer para o homem do século
XXI. Pode-se extrair um princípio aqui ou acolá, mas a maioria das
diretrizes estariam "contaminadas" por uma cultura tão distante da nossa
que seria ilógico adotá-la por meio de seus princípios. Daí teríamos
espaço (na melhor das hipóteses) para o existencialismo cristão, o qual
talvez ecoe na abordagem meramente devocional dada aos escritos de EGW,
ou na conclusão de que o que ela escreveu não passe de "conselhos", nada
que chegue a ser normativo. Obviamente, não há fundamento bíblico para
limitar um escrito inspirado à sua cultura. Não estamos negando a
influência cultural sobre indivíduos. Mesmo Deus Se sujeitou em
diversas ocasiões à cultura humana, como quando Se revelou aos profetos
judeus ou encarnou na Palestina do I século. Porém, Deus é um Ser real, e
de uma realidade que transcende a cultura. Sua revelação, embora se
expresse dentro de culturas particulares, é fruto da obra do Espírito
Santo, que de fato falou a indivíduos em dado tempo e espaço (1 Pe
2:20-21). Em conexão com a prática de datar os escritos de EGW, está a
acusação de que eles representam um estágio anterior do evangelicalismo,
marcado por legalismo e severidade;
4. Os escritos de EGW representam um cristianismo legalista:
As normas de conduta, vestuário, namoro, alimentação e vida cristã
encontradas na pena de EGW parecem severas, exageradas e antiquadas.
Como sustentá-las? Algumas até parecem suficientemente constrangedoras
para admití-las em público! Ainda assim, por seu compromisso com
doutrinas bíblicas, tais quais a observância dos dez mandamentos e o
respeito às leis dietéticas, os adventistas são taxados naturalmente de
legalistas pelos evangélicos em geral. Seriam, então, as Escrituras,
fonte de legalismo? Em verdade, temos de entender que o liberalismo
teológico e a própria liberdade irrestrita advogada pela pós-modernidade
favorecem o entendimento de que o indivíduo deve criar suas próprias
regras. Quaisquer normas para além disso seriam absurdas - mesmo as que
Deus tenha a transmitir. Temos de nos lembrar que mesmo o apóstolo
Paulo, o autor do NT que mais lutou contra práticas legalistas, defendeu
que os cristãos foram salvos para as "boas obras" (Ef 2:8-10),
investindo praticamente em cada fim das epístolas que escrevia sobre
necessidade de observar normas específicas de conduta, chegando ao ponto
de dizer o que deveria ocupar nosso pensamento (Fl 4:8)! Para
justificar a rejeição de porções específicas dos escritos de EGW, muitos
adventistas alegam que seriam seções não inspiradas, fruto ou de plágio
de autores de sua época ou mesmo de interpolações e acréscimos feitos
pelos editores e depositários de seus escritos;
5. Os escritos de EGW são resultado de plágio e constantes adulterações por parte dos depositários de seu patrimônio literário: Desde a publicação de The White Lie, de Walter Rea, acusações ad hominem
se multiplicam contra EGW, principalmente a de plagiadora.
Possivelmente, D.M. Canright, o primeiro grande apóstata do adventismo,
seja o autor dessa acusação, que se sofisticou ao longo do tempo. De
fato, EGW recorre a expressões e material de autores de sua época. Isso
diminuiria a inspiração de seus escritos? É mister lembrarmos que até os
autores bíblicos recorrem a citações de escritores de sua época: Paulo
cita o poeta Arato, em sua obra Os fenômenos (At 17:28) e Judas
cita o livro apócrifo de Enoque (Jd 14-15). A Inspiração pode
selecionar materiais e usá-los conforme seus propósitos. Lucas mesmo
admite ter escrito seu evangelho não por meio de visões ou aparições de
anjos, porém baseado em "acurada investigação", entrevistando
"testemunhas oculares" - nem por isso, admitir-se-ia que seu evangelho
fosse menos inspirado! Quanto às acusações contra os depositários, os
documentos do patrimônio EGW estão abertos à consulta e atualmente,
quanta coisa digitalizada, fica mais fácil para qualquer pessoa
averiguar os escritos originais. Geralmente, quem se sente contrariado
pela Revelação, costuma reagir acusando adulteração dos originais,
semelhante à senhora anti-trinariana que encontrei que acusava os
tradutores da Bíblia de torcerem o texto de Mt 28:18-20 (ainda que não
haja vairantes textuais do texto e todos os manuscritos suportem a
tradução encontrada em nossas versões bíblicas atuais).
Diante de tudo o que
expusemos, resta uma decisão. Ou descrermos ou crermos. Evidente que
isso tem de ser ponderado e, com espírito de oração, a pessoa sentir que
Deus a guia em uma decisão racional. Não é por coincidência que muitas
críticas feitas aos escritos de EGW possam ser voltadas contra as
Escrituras e vice-versa. A natureza da Revelação é uma só. Se eu
encontrasse motivos para descrer da EGW, teria de agir de forma lógica e
coerente, rejeitando igualmente a matéria bíblica. Entretanto, Deus tem
me conduzido à aceitação de tudo o que Ele inspirou e revelou. Acredito
ainda que ser adventista sem aceitar a autoridade profética de EGW em
questões como adoração, alimentação, conduta pessoal ou qualquer área da
vida cristã é não ser autenticamente adventista. Melhor seria adotar
outra confissão cristã. Sei que se trata de uma decisão particular.
Porém há um efeito dominó: quem rejeita os escritos de EGW, logo passará
a descrer de outros aspectos da fé adventista (o juízo pré-advento se
iniciando em 1844, o sábado, a reforma de saúde, etc). Até que ponto
seria possível ser adventista sem crer nessas coisas?
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